As reformas legislativas do Programa Capitalizar
O atual ministro Adjunto escreve na Advocatus sobre o Programa Capitalizar em que esteve envolvido por 18 meses, antes de ser membro do Governo
Durante 18 meses, integrei a Comissão executiva da Estrutura de Missão para a Capitalização das Empresas (EMCE), constituída no final de 2015 para propor medidas relativas ao financiamento da atividade empresarial no nosso país. A parte mais visível da nossa atividade foi um conjunto reformas legislativas que estão na origem de diplomas já aprovados ou em discussão no parlamento. A experiência dessas reformas foi muito estimulante e contém um conjunto de lições importantes para aquilo que pode ser a atividade legislativa dirigida às empresas e à atividade económica.
Registo três dessas lições:
A primeira lição é a de legislar com base em orientações precisas e dirigidas a problemas previamente identificados, ao invés de confiar as tarefas a juristas sem indicações concretas de política legislativa. No nosso caso, dispunha desde o início de uma relativa unanimidade por parte de observadores e agentes económicos quanto a três problemas que afetavam o financiamento das empresas:
- O baixo nível dos níveis de capitais próprios das empresas, por comparação com as congéneres europeias, o que determina uma grande vulnerabilidade em momentos de crise.
- A elevada dependência do financiamento bancário, com a quase totalidade do financiamento das empresas portuguesas a assentar no crédito bancário; quando este se torna mais exigente, as empresas ficaram sem alternativas de financiamento.
- O elevado número de empresas sobreendividadas. Com a crise, um elevado número de empresas em Portugal confrontou-se com uma violenta contração da procura dos seus produtos e uma redução das suas receitas; por isso, o seu elevado passivo tornou-se incomportável para os fundos libertados pela atividade operacional. muitas dessas empresas tornaram-se insolventes; outras, porém, são ainda viáveis mas carecem de um esforço importante para que se possam reestruturar e voltar a ter condições de atuar no mercado e criar emprego, embora o contexto em que o podem fazer seja muito adverso.
Cada um desses problemas foi objeto de propostas da EMCE, com reflexos na atividade legislativa. Por exemplo, para contrariar o baixo nível de capitais próprios das empresas, foi proposta a alteração do tratamento fiscal da capitalização das empresas. O sistema fiscal permite que os juros da dívida sejam dedutíveis ao lucro tributável das empresas. apesar de a dedutibilidade já ter sido limitada, a verdade é que ela corresponde a um subsídio do estado ao endividamento das empresas, o que teve efeitos perversos, encorajando as empresas a recorrer extensamente ao crédito.
Por isso, a EMCE propôs que o Orçamento de Estado para 2017, e a proposta de orçamento para 2018, beneficiem o financiamento das empresas através do aumento dos seus capitais próprios. As sociedades podem agora deduzir ao lucro tributável um valor correspondente a 7% do aumento de capital mediante entradas em dinheiro ou conversão de créditos, até ao montante de 2 milhões de euros, ao longo de seis exercícios. Esta medida altera o quadro em que os agentes económicos decidem proceder à capitalização das empresas.
Em paralelo, oferece-se ao sócio que reforce os capitais próprios da sociedade a recuperação de parte dessa entrada de capital por abatimento ao imposto que teria de suportar relativamente aos dividendos que venham a ser distribuídos pela sociedade. Também se permite a dedução ao IRC dos lucros que as empresas apliquem no aumento do seu capital social, criando assim um incentivo à não distribuição dos resultados.
Para atacar o segundo problema foram propostas medidas para diversificação das fontes de financiamento, e o exemplo mais importante é o do mercado de capitais. Em Portugal este oferece um contributo residual ao financiamento das empresas. As empresas e investidores têm-se afastado do nosso mercado, e um dos motivos é que o quadro jurídico é mais exigente do que aquilo que as regras europeias impõem e é desadequado ao tecido empresarial português, composto essencialmente por PME.
Continuam a ocorrer casos de empresas nacionais que, para recorrerem ao mercado, preferem fazê-lo noutras jurisdições, porque o nosso quadro regulamentar e a atitude do nosso regulador se mostram particularmente pesados.
Além disso, a canalização de poupanças nacionais para as empresas portuguesas através do mercado de capitais é prejudicada pela inexistência de produtos que possam ser adquiridos pelos fundos de investimento harmonizados que atuam no nosso país e que sejam especialmente destinados ao financiamento das pequenas e médias empresas. O acesso indireto ao mercado de capitais é, por isso, decisivo para o tecido empresarial português. Assim, foram desenhados produtos para facultar o acesso indireto de PME’s ao mercado de capitais.
Por isso se propôs a aprovação do que veio a ser o Decreto-Lei n.º 77/2017, que criou as sociedades de investimento mobiliário de fomento empresarial e os certificados de curto prazo, permitindo que as PME encontrassem uma nova fonte de financiamento que não necessitasse da intermediação bancária.
Finalmente, no que respeita ao sobreendividamento das empresas, a EMCE propôs uma alteração do enquadramento da recuperação de empresas e a insolvência. A atividade da estrutura de missão, a este propósito, consistiu, entre outros, nos seguintes pontos:
- Numa revisão do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
- Na criação de um Regime da Recuperação Extrajudicial de Empresas (RERE), que irá substituir o SIREVE, bastante mais flexível que este; na aprovação de um regime de conversão em capital dos créditos de terceiros sobre as empresas, fora de um processo de insolvência.
- Na criação de uma nova figura de profissional – o mediador de recuperação de empresas – que poderá intervir em processos de reestruturação, a pedido do devedor.
A segunda lição é a de incluir nos trabalhos preparatórios um número representativo dos agentes económicos e operadores jurídicos envolvidos na aplicação das leis. Em toda a atividade legislativa, em particular naquela dirigida às empresas, é importante evitar legislar no isolamento académico, com propostas que podem mostrar-se cientificamente corretas, mas desajustadas ao contexto da sua aplicação.
O envolvimento dos destinatários das leis assegura que as mesmas são apropriadas a solucionar os problemas que visam acautelar e não suscitam surpresas ou dificuldades na sua aplicação.
A EMCE envolveu extensamente os agentes económicos nos trabalhos preparatórios das reformas legislativas. Nas reformas sobre reestruturação das empresas, foram envolvidos as associações empresariais, a magistratura, os revisores oficiais de contas e os administradores de insolvência, advogados e académicos.
No caso do mercado de capitais, trabalhou-se de perto com a associação de emitentes, os gestores de fundos, os operadores de mercado e o regulador. As suas perspetivas foram consideradas e ponderadas. Não se quer com isto significar que o legislador abdicou de um juízo próprio, ou que as soluções legislativas são um consenso entre interesses contraditórios. Quer-se apenas referir que pontos de vista diversos e conflituantes foram tidos em conta e ponderados, e que o confronto dos mesmos assegurou uma melhor ponderação do legislador.
A terceira lição é a de evitar reformas extensas que fazem tábua rasa das regras anteriores. Na reforma do CIRE não se fez uma revolução face ao regime anterior.
A estrutura de missão e os agentes económicos fazem um balanço positivo das reformas das leis de insolvência e recuperação de empresas que foram efetuadas a partir de 2011. Mas, trabalhando a partir da experiência concreta de aplicação destas leis, foi possível propor um conjunto alargado de alterações que permitem atuar sobre aspetos carecidos de melhoria, que eram especificamente identificados pelos agentes económicos.
O mesmo se passou na legislação do mercado de capitais, em que as propostas efetuadas visaram responder a problemas concretos constatados pelos agentes económicos. Alterações legislativas são sempre perturbações da atividade das empresas, e devem ser efetuadas de modo limitado, incidindo sobre aspetos que se mostrem estritamente necessários à prossecução dos objetivos prosseguidos.
A forma como o ordenamento jurídico condiciona as decisões dos agentes económicos pode influenciar significativamente o desempenho das empresas e da economia. Legislar com base em diagnósticos prévios, envolvendo os agentes económicos e procurando reformar aspetos precisos, parece-me ser um método adequado para assegurar que a legislação dirigida às empresas contribui para a competitividade da economia.
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