As revoluções e a legionella
José Miguel Júdice analisa, no Jornal das 8 da TVI, temas que, só aparentemente, não têm nada que os una. Os que ficam para trás, a revolução e a legionella.
Sempre o embaraço da escolha quando preparo este programa… Hoje falarei da legionella, do Centenário da Revolução Russa e dos “left behind” (aqueles que ficam para trás no nosso mundo).
Como sabem os que me acompanham há mais tempo, gosto de falar de assuntos que não parecem ter nada em comum, mas têm, pois isso ajuda aí em casa a fazer as vossas próprias reflexões.
Os “Left Behind”
As sociedades atuais – mesmo com todas as crises que vivemos – são muito melhores para as pessoas do que aconteceu ao longo de milénios, por exemplo, nas últimas décadas 1 bilião de pessoas saiu da pobreza extrema. Mas, ao mesmo tempo, muitos ficam para trás – zonas desfavorecidas mesmo nos países ricos, os que tiveram a nível individual situações traumáticas de que não recuperaram, os que sofrem de graves limitações cognitivas, emocionais ou físicas, os que não estudaram ou adoeceram gravemente ao longo da vida, para apenas dar alguns exemplos.
Mas há muitos outros que sentem que ficaram para trás, mesmo que estejam incomparavelmente melhor do que no passado da Humanidade (uma família de classe média baixa tem hoje confortos que Luís XIV nem sonhava poder ter).
O facto de, coletivamente, estarmos todos melhor não é tão relevante como a perceção do que sentimos. Uma parte desse problema são as melhorias que outros em países longínquos sentem (os operários de Manchester beneficiavam do colonialismo inglês, do algodão que vinha da Índia e voltava em tecidos).
Realmente, a diminuição das situações coloniais foi uma das evoluções mais positivas à escala histórica (mas, por todo o lado, milhões de seres humanos sentem na pele que isto não é verdade).
O que é positivo para a Humanidade não é sempre positivo para cada um dos que, em cada época, a constituem. Veja-se a atual automação industrial e comercial, a internet, a robotização, como no Século XIX com a concentração industrial, a mecanização agrícola, os caminhos de ferro.
O progresso económico-social beneficiou muitos no 1º Mundo – mas evidentemente prejudicou muitos outros – basta comparar Londres com Middlesbrough, Nova Iorque com Detroit, Paris com Lille, Lisboa com o interior agrícola português.
Nos últimos 15 anos, em todos os países mais desenvolvidos, as desigualdades regionais aumentaram muito, como no mês passado o The Economist explicava, com gráficos e mapas em apoio. O descontentamento pressentido e a falta de esperança são fermentos revolucionários. E, por isso, este tipo de evoluções está a provocar uma situação pré-revolucionária de que os populismos são expressão evidente.
Nunca as grandes massas tiveram, em milénios, formação como a atual – quem nas últimas décadas chegou ao mercado trabalho está, por isso, muito melhor apetrechado para triunfar – mas com isso aumentaram as suas exigências e expectativas.
A falta de inflação, a estagnação dos rendimentos e a pressão fiscal, fez instalar a convicção de que pela frente virão décadas de trabalho duro, mas apenas para se sobreviver: quem chega ao mercado de trabalho, começa a ganhar menos de 1000 euros e prevê que se reformará dentro de décadas a ganhar pouco mais de 2000 euros, e, ainda pior, duvida que venha a ter pensão de reforma segura.
Isto são factos, mas o importante é o que fazemos com eles.
As revoluções
Ao longo da História da Humanidade, as revoluções foram o resultado de situações semelhantes. Em regra seguiram-se a períodos de aumento da produtividade, acumulação de riqueza, aumento de expectativas e exigências, desilusão, revolta, rutura.
Amanhã faz 100 anos a tomada do poder pelos bolcheviques na Rússia, os efeitos foram devastadores, leiam qualquer livro sobre o comunismo soviético. Ou o texto de António Araújo no Público de 15 de outubro, “Gulag”, se tiverem dúvidas. Para ele, o óscar do jornalismo que, por vezes, aqui atribuo.
Mas o problema não é que todas as revoluções falham e acabam a criar ainda mais injustiças. O problema é que, sempre ao longo da História, em nome de ideologias que vão variando, as revoluções acontecem. A questão é como as evitar.
A única solução é antecipar os problemas com reformas, e que elas sejam ousadas e consistentes.
A legionella
Porquê juntar este tema aos outros, estarão alguns a perguntar? A razão é óbvia: chama-se “opções estratégicas do Estado Português”. O surto de legionella aconteceu num dos hospitais mais centrais do País, com dezenas de pessoas afetadas. O ministro da Saúde é já um grande ministro porque depressa aprendeu a arte e a ciência do eufemismo. Disse, sem se rir nem chorar, que “alguma coisa correu mal”.
Arrisco dizer que isto é apenas um exemplo mais da estratégia com que dois governos sucessivos enfrentaram a falência do Estado Português que ocorreu em 2011. Em vez de reformar o Estado e o adaptar à realidade de um país pobre e com escassos recursos, cortou-se nos investimentos e nos chamados custos intermédios (que inclui a manutenção e as grandes reparações de equipamentos) e aumentaram-se os impostos.
Quanto a este tema, este Governo piorou tudo. Governando para a sua base de apoio eleitoral, usa todos os recursos para melhorar a vida dos funcionários públicos e dos pensionistas. Esquece-se, como venho dizendo, dos verdadeiramente mais desfavorecidos (como os incêndios tragicamente demonstraram), do investimento reprodutivo, dos que não têm a vantagem de trabalhar para o Estado.
E o problema é que a manta não chega para todos. Por isso, as opções do Estado: preferem aumentar funcionários, aumentar os impostos indiretos que a todos atingem, não fazer manutenção de equipamentos, com Webs Summits fazer de conta que apoiam a iniciativa privada. E só a iniciativa privada pode dar futuro e esperança aos ‘left behind’.
Tem tudo para acabar mal? Tem. Mas pode ser que Deus seja socialista (já que o Diabo é do PSD) e eu me engane…
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