O que o Governo parece pretender fazer é a Reforma do espírito sectário e a Reforma do facilitismo estrutural a uma certa Ética da República.

O Governo declara “guerra à burocracia”. Como princípio fundador da acção de um Executivo tímido não deixa de representar um desígnio maior e fonte de inspiração para os portugueses. Balzac escreve que a “burocracia é um mecanismo gigante controlado por pigmeus”. A guerra contra a burocracia é então uma ofensiva do Governo contra o mecanismo gigante ou contra os pigmeus? As duas coisas são indissociáveis, mas a ideia central ao executivo é o secular desígnio de sucessivas gerações de políticos – As Reformas Estruturais. Se o programa político são as famosas Reformas Estruturais, as políticas públicas têm de ser transformadas para fazer frente ao mecanismo gigante.

Convém sublinhar que Schumpeter afirma que a “burocracia não é um obstáculo à democracia, mas um complemento inevitável à própria democracia”. Neste sentido, se as Reformas pretendem melhorar a qualidade da democracia, então as Reformas exigem o reforço da burocracia. O argumento político parece ter aqui um momento de subversão política em que a “boa burocracia” existe para eliminar a “má burocracia”.

Não deixa de ser irónica e apropriada a observação de Oscar Wilde sobre a natureza da burocracia: “A burocracia expande-se para ir ao encontro de uma burocracia em expansão”. Ao confundir Reformas com burocracia, ao reduzir a guerra à burocracia ao movimento de simplificação de procedimentos e digitalização da Administração Pública, o Executivo está apenas a revelar um programa de modernização económico que vai ao encontro de um qualquer espírito liberal mais clássico.

A burocracia que o Primeiro-Ministro tem em mente aproxima-se das reflexões de Walter Bagehot quando este afirma, em pleno século XIX, que a “burocracia aumenta o poder do Estado, aumenta o poder do Estado nos negócios, aumenta o poder dos Funcionários do Estado, em vez de deixar livre as energias da Humanidade; a burocracia excede a quantidade de Governo necessária, tal como é um obstáculo à qualidade das decisões. A burocracia pretende ter a aparência de uma ciência, mas na realidade é apenas incompatível com os verdadeiros princípios da arte dos negócios”.

O Primeiro-Ministro pretende assim libertar as forças económicas e vivas da nação para proporcionar a prosperidade dos portugueses. Existe aqui um pequeno detalhe quando a burocracia é colocada no epicentro das Reformas. Recordo que Eugene J. MacCarthy afirma que “a única coisa que nos salva da burocracia é a sua ineficiência. Uma burocracia eficiente é a maior ameaça à liberdade”. A política é dada a estes paradoxos e a estas contradições. Não existem soluções simples para problemas complexos.

O Governo declara guerra à “cultura de quintal”. O imaginário do quintal ocupa um lugar privilegiado na cultura política portuguesa. É a ideia política de que os critérios da acção política devem ser deduzidos com base na “observação dos factos políticos”. Não existem modelos genéricos e gerais nem “princípios a priori”, mas a directa constatação do modo de funcionamento de uma democracia deturpada por factores não democráticos, por poderes fácticos, por uma cultura de casta e por práticas clientelares de longa data.

A ideia parece implicar a revisitação e a transformação do modo de relação entre o Estado e a Sociedade. O contrário da cultura de quintal passa pela afirmação de uma Administração Pública entendida como um sistema integrado disponível em rede que distribui pelo território nacional um conjunto concreto de serviços públicos. É como se a cultura de quintal fosse o marcador social da política portuguesa – o domínio de uma classe política instalada e medíocre que encontra no Estado a origem de todos as benesses e privilégios devolvendo exclusivamente as grandes proclamações demagógicas e os grandes negócios centrados na multiplicação dos quintais.

É nos quintais que vivem e procriam os pigmeus da burocracia. Logo, todas as Reformas Estruturais implicam o controlo do mecanismo gigante da burocracia, bem como a circulação das elites que ocupam os cockpits do sistema. O que o Governo parece pretender fazer é a Reforma do espírito sectário e a Reforma do facilitismo estrutural a uma certa Ética da República. De certo modo, o que o Primeiro-Ministro anuncia é uma Revolução Cultural.

Todas estas Reformas Estruturais não se confundem com Pactos de Regime nem Acordos de Legislatura nem Reformas Sectoriais. O que está em causa é uma preocupação da política portuguesa que se arrasta desde o século XIX – Recentrar o Estado ao serviço dos portugueses e eliminar o Estado que se serve dos portugueses. Acabar com um Estado que se agarra a Portugal como um corpo estranho.

Este programa político não é apenas para o tempo de um Ministro, mas para o tempo de uma geração.

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Burocracia no Quintal

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