Crise é chamar a estupidez pelo nome

O governo não quer reconhecer que o regime enfrenta uma prova maior. Mas a questão persiste – Como resolver este novo “negocismo” democrático?

Ou o país vive um dilema ou o país vive na indiferença. Depois de uma sondagem em que os portugueses classificam Portugal como um lugar impróprio para consumo, os mesmos portugueses não querem eleições nem dissoluções. Não se percebe se é o dilema do medo – para pior já basta assim. Não se percebe se é a indiferença secular de um país obediente – não vale a pena o incómodo para tudo ficar na mesma. Esta mentalidade de resignação é uma marca de água portuguesa. É não fazer e levar os pés à boca para ir a lugar nenhum. E é para lugar nenhum que Portugal se dirige.

Depois há a crise política que não é crise. O governo passeia pelo país os resultados económicos dignos de um governo de direita. O SNS entra em funcionamento intermitente, um SNS em regime de turnos por escassez de quadros, por escassez de financiamento, por escassez de recursos. O SNS parece um apartamento comunitário partilhado em dias alternados pela geografia política do ministério. Mas o governo é socialista, por isso o SNS está em boas mãos e aos portugueses aconselha-se a não adoecerem no verão.

A crise política que não é crise não abala as sondagens. O PS mantém-se à frente sem maioria absoluta, o PSD está em estado vegetativo, os pequenos partidos continuam pequenos num país também pequeno. Existe nas sondagens uma maioria parlamentar de direita, mas tal não significa nada porque não há políticas alternativas, não há dissoluções, não há eleições. As sondagens cumprem o calendário dos despromovidos. O governo governa. A oposição faz uma triste figura. O país apático faz contas ao fim do mês e queixa-se. Portugal é um país de lamúrias.

Ainda temos o ritual do ranking das escolas em plena guerra entre o ministério da educação e o ranking dos professores. Ranking por ranking, nada atinge a rotina nacional. Coloca-se a educação como factor central ao desenvolvimento do país, mas os professores ingressam na classe proletária, perdem estatuto, perdem rendimento e estão reduzidos a nómadas analógicos nas listas do ministério. Os professores a lutar também estão a ensinar e ensinam as matérias sociais com cartazes “racializados” que ninguém assume ou assina. E o país distrai-se, e o país entretém-se, e o país discute o racismo em português suave com a violência das redes sociais. E assim todos se ofendem e todos se sentem ofendidos. Portugal é um país de indignados.

No país com a geração mais qualificada de todos os tempos, os licenciados perdem estatuto, perdem o lugar no “elevador social”, perdem sobretudo estatuto financeiro e perspectivas profissionais ao nível da grande referência da europa. Talvez seja este o grande desígnio nacional – formar quadros superiores para o espaço europeu sem qualquer benefício nacional imediato. É de novo a lógica da emigração e das “remessas” enviadas para o país de origem que nunca haverá de pagar o que estes licenciados ganham na Europa desenvolvida. É a futebolização dos licenciados – uma vez no mercado internacional estão perdidos para sempre para o mercado nacional.

A interminável comissão parlamentar de inquérito à TAP termina finalmente com o anti-clímax que choca a plateia dos filmes de acção. Ninguém sabe, ninguém viu, ninguém fez, ninguém decide, ninguém fala, ninguém imagina. A comissão é um abcesso de fixação enquanto ao lado, no país, não se passa nada porque nada tem de se passar. Aguarda-se com expectativa o relatório da comissão, que só poderá ser um clássico da literatura política democrática. Em Portugal já se passou de tudo, só falta mesmo passar a ser Portugal.

A comissão tem sido uma tele-escola para a política portuguesa. Observa-se uma classe política que assume uma postura institucional pretensiosa e pedagógica, mas que governa com a informalidade de um estabelecimento a retalho no grande mercado das políticas a granel. O grande governo socialista não é disfuncional porque não funciona, mas nos tiques e nos toques revela a síndrome de uma ineficiência política congénita. Não haverá alternativa? Está o país condenado à medíocre conveniência dos calendários políticos? Não haverá espaço sequer para uma remodelação?

Entretanto, o ar que se respira no país traz os aromas do declínio. Como alguém escreveu antes de mim, “sem mudanças institucionais, o crescimento económico alarga a estrutura de oportunidades para a cleptocracia”. O que é estranho é que um regime democrático normalize a “cleptocracia”, conferindo-lhe cobertura e respeitabilidade institucional.

A atmosfera que se liberta da comissão de inquérito aponta para um clima de facilitismo, de opacidade, até mesmo de “corrupção” moral, política, talvez financeira. Os dinheiros públicos em circulação democrática entre privatizações e nacionalizações, só abrem as portas a oportunidades de negócio que servem muitos interesses, mas nunca o interesse nacional. Exércitos de advogados, empresários, “facilitadores”, acrescentam uma “classe patrícia” obcecada por um estilo de vida europeu num país pobre e indigente na criação de riqueza. Uma maioria absoluta e um sistema judicial “burocratizado” acrescentam ao problema.

O governo não quer reconhecer que o regime enfrenta uma prova maior. Mas a questão persiste – Como resolver este novo “negocismo” democrático?

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