Cuidado com o vírus do populismo

Não interessa ao populismo tranquilizar as pessoas, importa somar teorias da conspiração, criar a percepção que os sistemas políticos estão a mentir.

Muita gente se esquece que Hitler ganhou eleições democráticas enquanto os alemães olhavam para o lado e se fingiam de distraídos, depois veio a sinfonia do extermínio e de um país em cinzas, mas era tarde, já a Europa sangrava por todos os lados. Em 2020 não há nenhuma criatura de bigodinho curto a assustar o mundo que parou por conta de um vírus que para lá de semear a morte ainda lavra na desgraça económica e laboral das nações.

Em tempos de confinamento, no entanto, podem surgir desvios aos valores da liberdade e regimes democráticos. Na Rússia, as tecnologias de reconhecimento facial controlam os cidadãos nas ruas de Moscovo; na Hungria, Viktor Orbán aproveitou a emergência sanitária para surripiar o poder de governar por decreto durante tempo indeterminado. São dois exemplos de como os tiques autoritários de títeres que salivam com o «lei e ordem» têm que ser cautelosamente acompanhados e não podemos estar distraídos sob o risco de surgirem outros cataclismos geopolíticos como em meados do século passado.

Nos dias em que o monotema é o COVID-19 e em que «os entusiasmas do pânico», como escrevia Javier Marias no El Pais, assumem um protagonismo quase ignóbil, vemos como vai crescendo o primado do pequeno e seguro, descurando os valores da fraternidade e solidariedade que devem balizar uma comunidade. Muito rasteiros estes sinais ainda, mas preocupantes, e assentes no medo que é a guloseima que o diabo deixa ao alcance dos menos esclarecidos e que desperta a bruma dos sentimentos mais negros da natureza humana.

E não chega à União Europeia, uma das vítimas mais evidentes desta pandemia, despejar 500 mil milhões para salvar uma economia em depressão, porque quando não há liderança nem uma resposta colectiva devidamente articulada, uma injecção de dinheiro sem alma não cura nada nem ninguém. Com este vazio de personalidades marcantes a nível europeu, não interessa ao populismo tranquilizar as pessoas, importa somar teorias da conspiração, criar a percepção que os sistemas políticos estão a mentir, para depois aparecerem do nada uns ditos paladinos de uma nova ordem que será muito mais traumatizante por ser menos democrática e mais sustentada na energia que sugam dos egos gigantes de criaturas medíocres, esses próprios populistas.

É impossível descortinar como vai estar o mundo daqui a um ano, não conhecemos as linhas da sorte das suas mãos, e, se pudéssemos, faríamos o que Corto Maltese contou na “Balada do Mar Salgado”: «apercebi-me de que não tinha linha da sorte. Então peguei na navalha do meu pai e fiz uma como queria», mas não temos essa capacidade só deixada aos deuses da sorte e azar. Contudo, temos de estar vigilantes perante quem quer navegar a onda do descontentamento contra os alicerces dos Estados. E como dizia uma das principais personagens, Michel Vidal, da fabulosa série “Barão Negro”, «a força do fascismo e a de todo o totalitarismo é roubar-nos as nossas palavras, as palavras da revolta popular». E é preciso uma cortina de segurança contra estas ameaças. Cuidado com o vírus do populismo.

O autor escreve segundo a antiga ortografia

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