Dogmas & debates
O debate democrático está transformado num encontro circunstancial entre dois clubes políticos que falam para os seus apoiantes.
O debate é a consagração da democracia. A democracia é o princípio do contraditório. E a democracia é o debate em movimento em que do confronto entre o contraditório se encontra a solução para a nação. Será esta uma descrição calibrada da temporada de debates eleitorais? Obviamente que não.
O debate democrático está transformado num encontro circunstancial entre dois clubes políticos que falam para os seus apoiantes. O princípio de esclarecer e de convencer os eleitores do outro lado é uma ideia a despropósito que ninguém pretende praticar. Falar para os “nossos” é a solução segura. Destruir os “outros” é a estratégia vencedora.
Vencer o debate é o propósito político único e exclusivo. É como se a política fosse um jogo de soma nula onde os argumentos são como milícias populares com o monopólio da certeza. Com tantas certezas políticas é incompreensível a natureza dos debates. Debates que se aproximam de um jogo de “speed dating” em que no fim os dois lados continuam solitários, mas politicamente triunfantes nas suas certezas. Os debates são suspensões da realidade em que o mundo é reduzido ao universo precário do jogo político.
Os debates não têm de ser uma sessão para iluminados. Só que os debates devem saber falar às “classes populares” sem as tomar como destituídas. E também não devem adoptar a lógica de um “reality show” para entretenimento das massas e garantia das audiências de televisão. Uma ronda rápida pelos problemas do país em que uns têm todas as responsabilidades e os outros têm todas as soluções.
Esta ronda de debates não revela soluções políticas, mas projecta uma visão moralista da política. A “política virtuosa” debate com a “política viciosa” e no final feliz ganha o herói político. Há primarismo onde deve haver profissionalismo. Há sectarismo onde deve haver pluralismo. Há arrogância onde deve haver tolerância.
Os debates estão transformados num confronto de dogmas sem abertura ou qualidade. Tudo é demasiado previsível, tudo é demasiado preguiçoso, tudo é marcado pelo imediatismo do comentário “pret à porter” para consagração democrática. Os comentários fazem a análise do debate e estabelecem o vencedor. Os debates estão configurados para convencer os comentadores consagrados como representantes do país. Só que aquilo que os comentadores registam não representa o entendimento dos portugueses. E o entendimento dos portugueses não se mede apenas pelas audiências nem pelas sondagens. Falta sempre o pormenor do voto. Porque só o voto é soberano.
O princípio essencial de toda esta temporada parece ser uma evidência secular na política portuguesa – “É melhor debater uma questão sem a resolver do que resolver uma questão sem a debater”. Por esta razão fundadora da democracia portuguesa, pode debater-se tudo sem se resolver nada.
Imaginem os portugueses se o debate servisse para resolver um problema político. Com a eficácia dos debates circulares em circuito fechado, o país resolvia os seus problemas estruturais e a política ficava vazia de problemas perante uma nação próspera. Os portugueses com dois empregos ou dependentes de prestações sociais para não caírem na pobreza ficariam reconhecidos. Mas não tenhamos ilusões. O debate político em Portugal é um jogo de preliminares, um poço da morte onde as motas desafiam a gravidade sem saírem do mesmo lugar.
Das poucas questões políticas que se resolvem no país, muitas dispensam o debate eleitoral ou a normalidade de um debate público. A política democrática ainda incorpora práticas e condutas do “antigo regime” que simplesmente ficaram como o modo habitual de fazer política. Numa versão mais democrática e britânica para citar o Primeiro-Ministro Clement Attlee – “A democracia é uma forma de regime que prevê a livre discussão, mas que só é atingida se as pessoas pararem de falar”. Em Portugal falamos de mais e fazemos de menos.
A temporada de debates parece uma grande sessão de psicoterapia da democracia em Portugal. Está lá tudo sem estar lá nada. Traumas ideológicos, dramas estratégicos, dilemas tácticos, tudo a bem da sobrevivência política e não do bem comum da nação. Aliás o país é um apêndice ao debate. Mas o que verdadeiramente impressiona nesta galeria teatral é a insolvência dos discursos.
Cinquenta anos depois de Abril, a democracia surge esgotada, parece cansada, sem alternativas, sem ideias novas, incapaz de se reinventar para os próximos cinquenta anos. Há uma sensação de rotina formal sem conteúdo funcional. Seguir um debate é uma viagem no deserto. O discurso político não domina a retórica essencial a uma “esfera pública”, não demonstra qualquer consistência em termos políticos ou ideológicos, não projeta uma qualquer visão intelectual entre a esquerda e a direita e nem sequer articula uma identidade económica configurada num projecto tecnocrático. Os debates são o impasse de um país fechado entre a mudança e a resistência à mudança.
Portugal pensa que resolve com o sentimento os problemas da razão. A política recusa o pensamento e é tímida nas conclusões. “Agir é reagir contra si próprio. Influenciar é sair de casa”. E a casa da democracia é do tamanho de Portugal.
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