Espuma dos dias

  • Cristina Casalinho
  • 7:11

Trump será meramente o quadragésimo sétimo presidente dos EUA e as tendências gerais que se afirmam irão continuar o seu caminho, independentemente dele

Desde o anúncio da vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais, especula-se intensamente sobre o seu mandato e consequências para a economia norte-americana ou mundial. No momento da tomada de posse, o mercado de trabalho nos EUA apresenta-se forte, os rendimentos das famílias suportaram bem a subida de taxas de juro, a inflação abrandou, a produtividade acelerou à boleia do investimento tecnológico, e o ciclo de política monetária menos restritiva foi iniciado. Nos últimos dois anos, os mercados de capitais registaram ganhos históricos. Portanto, Trump assume funções num momento económico benigno dominado pela convicção que a economia conseguirá observar um abrandamento suave, centrando-se os maiores desequilíbrios económicos no setor público, onde pontua um défice em constante crescimento e persistentemente superior a 5% do PIB e dívida na vizinhança de 100%.

As iniciativas económicas mais emblemáticas do programa de Trump resumem-se a: redução de impostos, designadamente sobre as empresas; desregulamentação económica; introdução de tarifas comerciais; e combate à imigração ilegal. Enquanto se antecipa que as primeiras medidas possam produzir resultados positivos, as duas últimas poderão induzir contração. Ora, esta incerteza sobre as medidas de política económica e o seu impacto apresenta-se como um elemento dominante do contexto atual, refletindo-se no recente comportamento um pouco errático dos mercados.

A introdução de tarifas comerciais tende a impulsionar subidas de preços e eventualmente gerar guerras comerciais com potencial influência negativa na inflação. O combate à imigração num mercado de trabalho com falta de oferta de mão-de-obra pressiona os salários. A observação de rigidez da inflação poderá justificar maior lentidão no movimento de cortes de taxas de juro pela Reserva Federal. Apesar destes aspetos desafiantes do cenário central de desaceleração gradual, a América corporativa continua a evidenciar balanços robustos, elevada capacidade de geração de lucros, disponibilidade para investimento tecnológico e melhorias na produtividade. Estes últimos fatores oferecem proteção contra as consequências políticas mais nefastas. Por ora, o enquadramento benigno tenderá a continuar a dominar.

Adicionalmente aos elementos de risco referidos, acresce a componente política. Trump domina as duas câmaras, embora com a menor vantagem nos últimos quase cem anos. Ao contrário da tradição norte-americana, os últimos dois presidentes cumpriram apenas um mandato, criando instabilidade nas políticas. E a guerra no Médio Oriente irá acabar? E na Ucrânia? O que significam as pretensões de Trump em relação à Groenlândia ou ao Canadá?

Indiferentemente a Trump e às suas políticas, o investimento tecnológico e a disseminação do uso da Inteligência Artificial prosseguirão, assegurando ganhos de produtividade e o surgimento de novas indústrias. Esta evolução é indissociável da disponibilidade de energia barata: o gás natural surge como uma boa opção, com progressos ao nível do contributo das energias renováveis e nuclear. A competição internacional por materiais industriais raros, por mão-de-obra qualificada, por rotas comerciais seguras, por energia limpa e barata intensificar-se-á, indiferente a Trump.

Ao nível do mercado de capitais e para além do impacto no comportamento das variáveis fundamentais, Trump poderá ter um contributo determinante para a normalização dos ativos digitais como classe de ativos de direito próprio, se assegurar a sua regulação e supervisão institucional. O ouro, que desde a guerra na Ucrânia e imposição de sanções financeiras à Rússia reconquistou características de moeda de refúgio, deverá continuar a atrair interesse dos agentes de mercado (bancos centrais asiáticos que compram ouro em vez de ativos denominados em dólares, como dívida pública americana) descontentes com a hegemonia do dólar norte-americano nas transações internacionais e como reserva global de valor. De novo, indiferente a Trump, o mercado de dívida das economias desenvolvidas avançará no seu movimento de regularização com o encolhimento das carteiras dos bancos centrais, enquanto os défices deverão permanecer elevados, devido aos estímulos económicos anunciados.

Trump, pela sua prática política intempestiva e surpreendente, tenderá a introduzir uma camada adicional de incerteza ao contexto económico com custos naturais; todavia, as principais tendências vêm detrás e persistirão, apenas aceleradas ou atrasadas pela ação política. Esta será incapaz de inverter ou suster definitivamente tendências seculares como a transição digital e energética, o envelhecimento demográfico, a deslocação das populações, ou as alterações climáticas. Trump será meramente o quadragésimo sétimo presidente dos EUA.

  • Cristina Casalinho
  • Economista

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