Império orçamental

A realidade é o “pessimismo militante”. A política é o “optimismo irritante”. E o Orçamento é o seu “Evangelho”.

Seja o que o Orçamento for, não será certamente o Orçamento de que o país precisa. O documento doutrinário para o ano político é uma face da arte da ocultação. Números e mais números num exercício em que os interesses do Governo se substituem às necessidades do país. O equilíbrio das contas públicas recorre à técnica secular de um lego imaginário com um país a servir como um compêndio de falsas instruções. Só que o país é verdadeiro e o Orçamento é uma ficção.

O Orçamento é sempre a ficção política do ano. Cenários económicos saídos do jardim da primavera política. Propósitos políticos eleitorais disfarçados de desígnios nacionais. A “vida decrépita das marionetas” apresentada como cartilha para todas as políticas públicas que nunca serão concretizadas. O país das marionetas que têm os braços caídos porque não têm fios para manipular nem inteligência para agir. É este o Portugal moderno que Abril põe e a democracia dispõe?

Não. Não se pretende fazer uma análise técnica ou contabilística do Orçamento. Mas pretende-se observar o Orçamento do ponto de vista dos propósitos políticos inexistentes. Sem uma visão política consistente e projectada no horizonte do tempo, o Orçamento será apenas um fetiche em Excel. A política não é uma técnica, a política não é uma resposta automática codificada num método orçamental. A política é a definição de um propósito e de uma razão de ser para um país. O Orçamento está feito para “consumidores de relatórios” e “compiladores de notícias”. Cabe tudo num Orçamento com um país a sair por fora.

A época do Orçamento é uma espécie de época de caça ao eleitor distraído de um país empobrecido. É como se a política fosse um campeonato de futebol, um euro-milhões em cada tabacaria, o progresso em cada esquina, o plano político para a “gaiola doméstica” no grande zoo humano que é Portugal. O Governo ilumina o país com experiências económicas que têm resultados sociais desastrosos. O paraíso social é para turistas e “residentes não habituais”.

Mas Portugal é uma realidade prévia ao Governo socialista. E vai continuar quando este Governo morrer de morte natural ou artificial. A noção de mudança e de permanência é a base de toda a cultura política com reflexo na realidade social. A cultura política é o “Factor X” que permite separar o essencial do acessório. A cultura política é a garantia de que a política não se transforma num compêndio de truques e de expedientes, de fintas e de esquemas. A cultura política é a base de uma arte superior que se designa por governar um país.

O Governo não vai abrir um concurso público para o Orçamento. O Governo prefere sempre o ajuste directo.

O Orçamento é uma concretização do carácter político do primeiro-ministro. Fechado na segurança de um estado de “alienação política”, escuta a tempestade quente que devasta o país com um gesto passivo de quem aceita e revela publicamente a sua incapacidade. Se não é incapacidade política, então a ideologia do Primeiro-Ministro é uma versão do quietismo mais resignado que o Portugal democrático alguma vez assistiu. Assistiu, assiste e pagará no futuro.

Para além do slogan político da “consciência social”, a conduta política do primeiro-ministro não contempla a realidade social. É como se a política e a realidade fossem mundos separados à nascença. A política é a intriga na comissão política, a ambição nos corredores do Parlamento, os lugares para distribuir nas listas eleitorais, as influências e convergências num jantar comício. A política do Primeiro-Ministro adora o ritual burocrático da alta política de Bruxelas, mas detesta a complexidade e a “sujidade” da política que acontece todos os dias na vida anónima de um português anónimo.

O mundo real é um “ângulo cego” na visão política do primeiro-ministro. A realidade acaba por representar a antítese da sua própria visão do mundo. A realidade de um país próximo na distância é uma espécie de “submundo-tornado-sobremundo”, uma concretização do inferno na terra. A realidade para o primeiro-ministro é um “termo fantasista” que incorpora tudo aquilo que o próprio detesta, logo o esforço para manter a realidade afastada da política. A realidade é o “pessimismo militante”. A política é o “optimismo irritante”. E o Orçamento é o seu “Evangelho”.

O “optimismo irritante” é o Império da opção quietista, é a submissão aos acontecimentos, é a escolha conservadora.

Os portugueses “oprimidos pela realidade” dormem em tendas na Quinta dos Ingleses. Os portugueses tomados pela “revolta da doença” encaram um SNS em colapso iminente, como se a grande conquista da democracia fosse um hospital de guerra em plena planície ucraniana. Os portugueses na escola pública falham o “encontro com o futuro”. Os portugueses podem sonhar o que entenderem porque na realidade ficarão sempre no mesmo lugar. Uma linha no Orçamento é um relógio público parado.

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