Justiça tributária em Portugal: reformas, desafios e caminhos para o futuro

  • Pedro Miguel Braz
  • 10:06

A morosidade tem caracterizado a justiça tributária ao longo dos anos. Importa, no entanto, observar que algumas das medidas adotadas no passado recente têm produzido efeitos a esse nível.

A justiça tributária portuguesa tem passado por um ciclo contínuo de reformas, refletindo a necessidade de adaptação às exigências de um sistema fiscal eficiente e equitativo. Desde o final do século XX, uma série de alterações legislativas redesenhou o panorama jurídico-tributário, moldando as regras que ainda hoje regem os procedimentos e processos fiscais. Mas, passadas mais de duas décadas, essas mudanças foram suficientes para garantir maior celeridade e eficácia?

O número de processos pendentes nos tribunais de primeira instância caiu quase pela metade entre 2015 e 2023, enquanto o tempo médio de resolução reduziu-se significativamente. Contudo, a morosidade ainda persiste como um dos principais desafios do sistema, levantando questões sobre o impacto real das reformas implementadas e a necessidade de novas medidas estruturais.

Agora, com a recente criação da Comissão para a Revisão do Processo e Procedimento Tributário, o debate sobre o futuro da justiça fiscal volta ao centro das atenções. O que mudou e o que ainda precisa ser transformado? A resposta passa por um olhar atento às estatísticas, às propostas legislativas e ao papel crucial da Autoridade Tributária na prevenção e resolução de litígios.

Entre 1999 e 2004, procedeu-se a várias alterações legislativas, que, no seu conjunto, deram corpo à reorganização da estrutura legal que rege o procedimento e processo tributários, tal como ainda hoje se nos apresenta. Essas alterações compreenderam, entre outros, um Código de Procedimento e Processo Tributário, a Lei Geral Tributária, a transferência da organização administrativa dos tribunais tributários de 1.ª instância do Ministério das Finanças para o Ministério da Justiça e a criação dos Tributários Administrativos e Fiscais.

Em setembro de 2021 o Grupo de Trabalho Para a Justiça Administrativa e Fiscal, apresentou uma primeira avaliação com uma panóplia de propostas que refletem o progressivo aprofundamento da análise do contexto da justiça tributária e da necessidade de soluções multidisciplinares de implementação contemporânea.

Com o mandato de avaliar de forma profunda e abrangente o CPPT foi constituída em 2024 a Comissão para a Revisão do Processo e Procedimento Tributário e das Garantias dos Contribuintes.

É este, pois, o contexto atual que nos convoca para a questão: Qual a evolução da justiça tributária desde o início do século até ao presente?

Um marco relevante é a existência partir de 2015 em diante de registos estatísticos acessíveis. Vejamos os que, a nosso ver, se perfilam mais relevantes:

  • Processos pendentes Tribunais 1.ª Instância: 51.293 (2015) / 29.608 (2023)
  • Número de Juízes Tribunais Administrativos e Fiscais 2004: 129 / 2023: 270
  • Processos entrados / findos 24.753 e 19.148 (2015) / 10.584 e 15.745 (2023)
  • Disposition Time / Taxa de resolução: 1015 dias / 77,36% (2015) / 686 dias / 128,64% (2023)
  • Impugnação judicial / ação administrativa: 24.651 (2015) / 12.673 (2023)
  • Processos de outra natureza: 28.642 (2015) / 16.934 (2023)

A morosidade tem caracterizado a justiça tributária ao longo dos anos. Importa, no entanto, observar que algumas das medidas adotadas no passado recente têm produzido efeitos a esse nível. De facto, tal é visível quando se confronta os 51.293 processos pendentes em 2015 com os 29.608 pendentes em 2023. A contribuir para este resultado está, entre outros, o reforço do número de juízes ocorrido a partir de 2015 e a concomitante criação de equipas para a recuperação das pendências.

Uma reforma da justiça tributária implica, atualmente, a compreensão holística de todo o fenómeno, designadamente o contributo que o legislador deve impor aos atores do sistema (contribuintes, tribunais e Autoridade Tributária). Nesse sentido, a intervenção na área da justiça tributária implica medidas no domínio jurisdicional, mas também alterações a montante, designadamente quanto à intervenção da Autoridade Tributária nos procedimentos que legalmente lhe estão cometidos.

A única informação estatística fiável a respeito da taxa de sucesso dos contribuintes diz respeito à arbitragem tributária. As decisões favoráveis aos contribuintes no ano de 2023 oscilaram, em função do valor económico do processo e do tipo de tribunal entre os 59% e os 67% se se observar o número de decisões e os 44% e 54% se se observar o valor económico em questão. Com a prudência que a falta de informação impõe, não se estará distante da realidade assumir-se que contribuintes e Autoridade Tributária repartem entre si, e em partes iguais, o sucesso dos respetivos contenciosos tributários em sede judicial, no que tange os processos de impugnação judicial / ação administrativa os quais representavam em 2023 12.673 do total de 29.608 pendências em 1.ª instância.

Se a esta circunstância se somar que dos demais 16.934 processos contenciosos pendentes no ano de 2023, 16.232 respeitam a execuções fiscais e contraordenações, é fácil percecionar que há um papel a cometer legalmente à Autoridade Tributária com vista à evitação dos litígios tributários.

Num primeiro plano, ao nível da emissão do ato tributário lesivo com a criação de um normativo abrangente que imponha que esta se abstenha da prática de atos cuja ilegalidade tenha sido escrutinada reiteradamente pelas instâncias judiciais, assim como garantir uma maior efetividade dos procedimentos (audição prévia, revisão avaliação indireta, prova preço efetivo, etc.) de molde a obviar à emissão de atos tributários ilegais.

Num segundo plano, já ao nível contencioso sob a égide da Autoridade Tributária, como é o caso, exemplificativamente, do procedimento de correção de erros, as reclamações administrativas obrigatórias, as reclamações graciosas, até ao procedimento de revisão oficiosa previsto no artigo 78.º da LGT, o qual em condições excecionais, autoriza a revisão dos atos tributários, a lei é profícua em mecanismos que conferem ao contribuinte e à Autoridade Tributária a possibilidade de dirimirem o seu litígio, obviando assim ao recurso às jurisdições judicial ou arbitral.

Assegurar a eficácia nestes dois planos é um desiderato que, a par de todas as outras alterações aos normativos processuais, ao reforço dos recursos humanos dedicados à justiça tributária e à implementação de novas ferramentas tecnológicas, decisivo para uma maior celeridade e eficácia da justiça tributária.

  • Pedro Miguel Braz
  • Sócio da Garrigues

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