Luz e sombras sobre a descarbonização no setor dos transportes: O Decreto-Lei n.º 86/2021
A descarbonização no setor dos transportes é um imperativo normativo nacional e europeu, exigindo-se ao legislador português que faça luz, e não sombra, sobre os objetivos verdes consagrados.
Portugal dispõe de um novo regime jurídico relativo à promoção de veículos de transporte rodoviário limpos a favor da mobilidade com nível baixo de emissões. O Decreto-Lei n.º 86/2021, de 19 de outubro, transpõe a Diretiva (UE) 2019/116 e, além da adoção, sempre que viável, de critérios ecológicos, impõe a inclusão de uma percentagem mínima de veículos não poluentes, em vários tipos de contratos celebrados por entidades adjudicantes à luz do Código dos Contratos Públicos e cujos procedimentos de formação se iniciem a partir de 02.11.2021. Abrangidos estão diversos tipos contratuais, desde a compra e venda ao aluguer, passando pela aquisição de serviços públicos de transporte rodoviário de passageiros acima de um valor anual médio estimado em 1 000 000 EUR ou que envolvam a prestação anual de pelo menos 300 000 quilómetros.
Obscura está, porém, a questão (fundamental) de saber se os objetivos e a percentagem mínima de veículos não poluentes nele previstos se aplicam ao conjunto dos contratos celebrados em Portugal ou a cada um dos contratos celebrados por cada uma das entidades adjudicantes. Os objetivos fixados na Diretiva (UE) 2019/1161 referem-se ao “conjunto de todos os contratos” de um Estado Membro. Já a opção do legislador nacional é tudo menos clara.
Por um lado, parece ter assumido uma opção diferente da Diretiva, apontando para que a percentagem mínima é para ser cumprida em “cada contrato” (artigo 2.º, n.º 3; artigo 6.º, n.os 4 e 5). Mas, por outro lado, este diploma legal deixa pistas em sentido contrário, podendo, a partir delas, deixar margem para uma tentativa de interpretação do Decreto-Lei à luz da Diretiva que pretende transpor, no sentido de que afinal também o legislador nacional seguiu a lógica dos objetivos globais. É que, em algumas passagens, manteve-se a referência à globalidade de todos os contratos: é o caso da referência ao “número total de veículos pesados abrangidos pelos contratos públicos” e ao “conjunto de todos os contratos” (alínea b) do n.º 1 do artigo 6.º e nota de rodapé do Quadro III). Mas, se for esta a interpretação certa e a vontade do legislador, faltará garantir a exequibilidade ao diploma legal em causa, através de um ato normativo que o complemente e que explique de que modo os objetivos globais devem ser cumpridos por cada contrato ou por cada entidade adjudicante em particular. Isto é: é necessário que esse ato normativo “reparta os esforços” pelo território nacional e adapte a quota a cumprir em função das concretas características de cada região. Pense-se na evidente e justificável distinção, para este efeito, entre contratos a executar em zonas urbanas e contratos em zonas mais rurais ou entre contratos em zonas mais povoadas e em zonas menos povoadas. Uma tal repartição de esforços, com natureza normativa, é condição essencial para conferir aplicabilidade ao Decreto-Lei n.º 86/2021, se interpretado segundo uma lógica de objetivos globais.
Ainda que na mens legislatoris não esteja a lógica diferenciadora e adaptativa da Diretiva (UE) 2019/1161 – como seria mais acertado, à luz do princípio da proporcionalidade –, sempre pelo menos se imporia uma intervenção legislativa que eliminasse as passagens obscuras e clarificasse, sem margem para dúvidas, em que termos devem ser cumpridos os objetivos mínimos previstos.
A descarbonização no setor dos transportes é um imperativo normativo nacional e europeu, exigindo-se, em nome desse imperativo, ao legislador português que faça luz, e não sombra, sobre os objetivos verdes consagrados no diploma legal que aprovou.
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