Mitos e falácias sobre o IRS em Portugal (I)
A progressividade fiscal de IRS não foi desenhada para pôr os ricos a pagarem mais impostos, nem se destina a salários milionários.
Na sequência da discussão sobre o nosso sistema de IRS, tentarei nos próximos dois artigos desmistificar algumas falácias argumentativas sobre o IRS e a progressividade fiscal em Portugal.
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A progressividade fiscal do IRS em Portugal não se destina a fazer com que os ricos paguem mais
Há aqui dois conceitos que importa não confundir: riqueza e rendimento. O IRS não taxa a riqueza, taxa o rendimento. Embora as duas coisas possam estar relacionadas, uma pessoa pode ter um rendimento alto sem ter riqueza acumulada e vice-versa. Isto é especialmente verdade quando se fala de rendimentos do trabalho, o único sujeito a progressividade.
O rendimento que resulta da riqueza não é sujeito à progressividade do IRS. Existe já uma taxa única para o rendimento de capitais que se aplica a todas as pessoas, independentemente do seu rendimento total, quer se trate dos juros de uma conta a prazo com 5 mil euros ou de uma carteira de acções de 5 milhões. Há uma boa razão para existir esta taxa única, que existe na esmagadora maioria dos países, mas não é o tema deste artigo. O importante a reter aqui é que a riqueza não é taxada em sede de IRS e os rendimentos provenientes dessa riqueza já estão sujeitos a uma taxa única não progressiva. Ou seja, a progressividade no IRS não se destina a fazer com que os ricos paguem mais.
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A progressividade fiscal em Portugal não se destina a salários milionários
Sempre que se fala em diminuir a progressividade, alguém vem com o exemplo de um qualquer CEO a receber um salário milionário que passará a pagar muito menos. Há dias num debate José Gusmão mencionou Pedro Soares dos Santos (podia ter mencionado Jorge Jesus, que ganha 4 vezes mais, mas normalmente os bloquistas evitam chatear a malta do futebol). Isto dá duas impressões erradas: a de que a progressividade é destinada a esses salários milionários e que esses salários milionários representam uma parte importante das receitas fiscais em sede de IRS. Ambas estão erradas.
- Primeiro, a progressividade não pune principalmente salários milionários. Basta pensar que o terceiro escalão cuja taxa de IRS é quase o dobro do primeiro escalão (28,5% versus 14,5%) começa com salários líquidos inferiores a mil euros. Se continuarmos a andar para cima nos escalões, podemos verificar que alguém com um rendimento líquido de pouco mais de 2 mil euros já se enquadra no sexto escalão, começando a pagar uma taxa de IRS de 45% sobre qualquer acréscimo de salário. Receber 2 mil euros pode ser bom para Portugal, mas dificilmente é um “salário milionário” ou um salário que faça de alguém rico. Alguém que receba 2 mil euros por mês, mesmo que passe 20 anos a poupar metade desse valor mais os subsídios de natal e de férias, mal conseguirá poupar o suficiente para comprar um T2 no centro de Lisboa. Viver 20 anos com mil euros por mês para conseguir comprar um T2 em Lisboa dificilmente qualifica alguém como “rico” e muito menos “milionário”. Mas é a estes que a progressividade mais castiga. A progressividade não é desenhada para salários milionários. Se fosse, o escalão dos 45% começaria muito acima do que começa hoje. É desenhada para que quem ganha essa fortuna que são 1000€ comece a pagar o dobro da taxa de quem ganha 700€ e para que quem ganha 2000€ (algo semelhante ao salário mínimo no Luxemburgo) tenha que pagar 45% de IRS se receber algum aumento.
- Segundo, os “salários milionários” não representam uma parte substancial das receitas de IRS. Os últimos números que existem para 2017 indicam que as pessoas incluídas no 5º escalão (o maior na altura) foram responsáveis por 11% das receitas de IRS. O 5º escalão incluía pessoas que ganham em termos líquidos a partir de algo como 3500€ líquidos por mês. Mesmo dando de barato que isto é um “salário milionário”, claramente não representam uma parte importante das receitas. O governo não disponibiliza dados, mas não é difícil de adivinhar que se o patamar fosse colocado mais acima, nos verdadeiros salários milionários, a percentagem de IRS paga por eles seria ainda mais baixa. Por muito que alguns gostem de acenar com o fantasma dos ricos que ganham salário milionários, eles são muito raros, principalmente fora do futebol.
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O IRS não é só um imposto sobre o rendimento do indivíduo
Mesmo se assumíssemos que a progressividade se destina a castigar os ricos que recebem rendimentos milionários, há aqui um equívoco conceptual que mesmo muitos economistas tendem a ignorar. Um imposto não recai apenas sobre a pessoa que paga o imposto. Na verdade, a pessoa que tecnicamente o paga pode até nem sofrer muito com esse imposto. O IRS não é apenas um imposto sobre o salário do trabalhador, é um imposto sobre o rendimento de trabalho.
Para entendermos isto, até podemos usar o exemplo de outro imposto, o IVA. O IVA, supostamente, é um imposto sobre o consumidor. Mas o IVA não é um imposto pago apenas pelo consumidor. Se assim fosse, os donos de estabelecimentos de restauração não teriam feito tanta pressão política para baixar o IVA da restauração (afinal, seriam os clientes a pagar, certo?).
Os donos de restaurantes insistiram na baixa do IVA da restauração porque sabiam que isso lhes poderia trazer mais lucro, fosse por venderem mais refeições baixando o preço, fosse por poderem manter o preço das refeições ficando com o correspondente à redução do IVA. Mais tarde disseram mesmo que graças à redução do IVA puderam contratar mais trabalhadores e pagar melhor aos que lá tinham. Ou seja, a redução do IVA beneficiou consumidores que em alguns casos pagaram menos, os donos dos restaurantes e os funcionários.
Se uma queda do imposto beneficia empresários, empregados e consumidores, isto quer dizer que na verdade ele é pago por todos e não só pelos consumidores. A forma como o custo deste imposto é distribuído depende muita da situação de cada um. Se o sector da restauração estivesse com falta de pessoal, muita da redução do IVA iria para os trabalhadores sob a forma de salários mais altos. Nos restaurantes sem necessidade de aumentar clientela, os donos dos restaurantes absorveriam todo o benefício da descida do IVA porque poderiam manter os preços que tinham antes da descida do IVA sem perder clientes.
Com o IRS a situação é semelhante. O IRS não é um imposto sobre o rendimento de um indivíduo, é um imposto sobre uma relação de trabalho. Uma relação de trabalho beneficia o trabalhador, o empregador e mesmo outros funcionários da mesma empresa. Se o IRS fosse mais baixo para um trabalhador altamente qualificado, esse trabalhador poderia eventualmente ganhar mais, mas a empresa também poderia gastar menos para lhe dar o mesmo salário líquido. Isso faria com que sobrasse mais dinheiro para os donos da empresa, que poderiam ficar com eles, contratar mais trabalhadores ou aumentar-lhes o salário, dependendo das necessidades do momento.
Tal como o IVA, o IRS é um imposto pago por todos aqueles que podem beneficiar direta ou indiretamente dessa relação de trabalho. Tudo depende da sua capacidade negocial. Se um trabalhador tiver grande capacidade negocial, como têm muitos daqueles que recebem salários milionários, o mais certo é que o IRS seja mais um imposto sobre as empresas que pagam salários (e os restantes trabalhadores) do que sobre o próprio trabalhador.
Basta imaginar o que aconteceria nos clubes de futebol se amanhã fosse lançada uma taxa de IRS de 90% sobre salários milionários. Das duas uma: ou os clubes aumentariam os salários brutos, suportando o custo do IRS (tendo que cortar custos na formação, nos restantes salários, etc) ou os clubes perderiam os seus melhores jogadores. O caso recente da não contratação do Cavani, alegadamente por o Benfica não conseguir pagar a carga fiscal necessária para lhe pagar o salário líquido que ele desejava, é outro bom exemplo. O Cavani, que supostamente pagaria o IRS, foi o menos prejudicado por tudo porque conseguirá o mesmo salário líquido noutro lado. Quem acabou por ficar prejudicado pelo imposto foi o clube, os seus adeptos e o futebol português em geral (embora, em boa justiça, tenha havido um português que ficou a ganhar: o treinador do PAOK).
Porque é que é importante perceber que o IRS é um imposto sobre uma transação, e todos os que dela beneficiam, e não um imposto sobre um indivíduo? Porque se percebermos isso, a discussão passa para o ponto em que deve estar: devemos taxar desproporcionalmente contratos de trabalho com salários mais altos e trabalhadores tendencialmente qualificados? Devemos punir fiscalmente o trabalho qualificado e as empresas que pagam salários mais altos? Ou será que é precisamente esse tipo de contratos e empresas que precisamos para que o país cresça e crie oportunidades para todos (mesmo os que recebem menos)?
Daqui a duas semanas escreverei sobre a forma como a progressividade pode ser regressiva para alguns, sobre o seu efeito sobre as mulheres em particular, sobre o efeito na desigualdade (que existe, especialmente se a mudança for repentina), na queda das receitas fiscais com uma taxa única e sobre como duas taxas pode ser um modelo politicamente mais exequível do que o modelo de uma taxa, sem perder muitos dos benefícios da taxa única.
Sobre a evolução das receitas após um choque fiscal, deixo aqui uma pista: no gráfico abaixo podem ver a evolução da receita de IRS de Portugal e República Checa. A República Checa passou de um regime progressivo para uma taxa única de IRS em 2008 e Portugal lançou um “enorme aumento” do IRS em 2013. Abaixo também podem ver a evolução das receitas fiscais. Portugal e República Checa são países com populações e economias de tamanho semelhante. Deixo ao leitor a oportunidade de interpretar os dois gráficos. Escreverei mais sobre isto no próximo artigo.
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