O AssessorIA já está em tribunal, mas quem o julga?
De facto, a morosidade é a ferida aberta da justiça, e a IA surge como promessa de cura. Mas sem prudência, e salvaguardas, a pressa pode ferir mais fundo do que a demora.
A Inteligência Artificial (IA) entrou oficialmente nas salas de audiência portuguesas. Chama-se AssessorIA e é o novo sistema que o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa começou a testar para apoiar os juízes. À primeira vista, é o passo natural de uma justiça que procura recuperar o tempo perdido e modernizar-se. Mas sob o brilho da inovação impõe-se a pergunta essencial: até onde deve ir a IA no ato de julgar?
Segundo o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais (CSTAF), o AssessorIA opera num sistema fechado, com acesso apenas a fontes oficiais. Mas o comunicado não é claro quanto ao objetivo concreto, funcionalidades e capacidades técnicas, limitando-se a destacar os benefícios esperados: maior rapidez e precisão na análise de grandes volumes de dados, redução de custos através da automatização de tarefas repetitivas, ganhos de eficiência processual, apoio na pesquisa de jurisprudência e transcrição dos julgamentos.
De facto, a morosidade é a ferida aberta da justiça, e a IA surge como promessa de cura. Mas sem prudência, e salvaguardas, a pressa pode ferir mais fundo do que a demora.
Ao ser considerado um sistema de risco elevado, o AssessorIA deve ser inteiramente auditável, os seus resultados explicados de forma clara, e o juiz permanece no centro do processo decisório, com total poder para aceitar, recusar ou modificar qualquer recomendação.
Além disso, em contextos de testagem, é exigido o consentimento livre e informado dos participantes. Estará este consentimento a ser dado? E mais, terá sido efetuada uma avaliação de impacto antes de o AssessorIA entrar em funcionamento? Embora tais obrigações ainda não sejam formalmente aplicáveis, o CSTAF refere que “desde a sua conceção, o projeto foi acompanhado com todos os requisitos exigidos” pelo AI Act. Se assim for, estaremos perante um caso inédito: um projeto público português que cumpre as obrigações regulatórias antes de estas sequer produzirem efeitos. Uma demonstração de zelo regulamentar que, se confirmada, merecerá certamente nota de rodapé na história da IA em Portugal.
Mas a conformidade legal é apenas parte da equação. Apesar de libertar os juízes das tarefas mais morosas, a IA desafia-os a resistir à tentação de confiar cegamente na máquina. Assim, o espírito crítico e a literacia digital tornam-se imperativos: a independência judicial depende também da capacidade de compreender, verificar e contrariar o algoritmo.
E é aqui que deverá entrar o Gabinete de Auditoria de IA do CSTAF. Apesar de estar ainda em fase de desenvolvimento, será essencial para antecipar falhas e garantir legitimidade. Também a Carta Ética para o Uso da IA, aprovada pelo CSTAF, é um passo na direção certa – que só adquire verdadeiro valor quando acompanhada de prática efetiva.
O futuro da justiça não está em abdicar da tecnologia, mas em dominá-la. Um tribunal moderno não precisa de temer a IA, desde que esta opere sob regras claras, auditáveis e compatíveis com as garantias do Estado de Direito. A revolução digital pode, e deve, chegar à justiça portuguesa, mas tem de o fazer com garantias, não com atalhos.
O verdadeiro avanço será conseguir que cada juiz use o sistema com confiança, sem abdicar da dúvida. Porque a dúvida, essa ferramenta humana e imperfeita, continua a ser o melhor antídoto contra qualquer automatismo.
No fim, o que está em causa não é apenas a eficiência dos tribunais: é a própria natureza do ato de julgar. Podemos automatizar processos, mas não a consciência. E enquanto o Estado de Direito for humano, a justiça terá de continuar a sê-lo também.
Assine o ECO Premium
No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.
De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.
Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.
Comentários ({{ total }})
O AssessorIA já está em tribunal, mas quem o julga?
{{ noCommentsLabel }}