O atraso português: será que a culpa é da cultura?
Será que o atraso português é resultado de questões culturais? Não pode ser essa, de forma alguma, a principal explicação para o atraso económico relativamente a outras nações.
Uma das “teorias” mais frequentemente difundidas sobre a causa dos males de Portugal passa por atribuir o essencial das culpas a razões de ordem cultural. Estou aqui a definir “cultura” num sentido lato, socio-antropológico, enquanto conjunto de conhecimentos, crenças, valores, normas e comportamentos específicos a um grupo, comunidade ou povo. Ou seja, os portugueses seriam preguiçosos, não respeitariam as instituições, seriam corruptos por natureza, e por aí em diante, o que explicaria boa parte dos problemas que estão na origem do seu atraso. Toda a gente já ouviu teorias desta natureza que prometem explicar o atraso económico português.
Esta “teoria” levanta, no entanto, algumas questões difíceis de resolver, sendo uma delas que não toma suficientemente em consideração o facto de os traços culturais de um povo terem tendência a mudar a longo prazo.
Ora, como vimos em anterior artigo, o atraso de Portugal é, essencialmente, resultado de um processo relativamente recente que decorreu ao longo do século XIX, apesar das causas poderem vir de trás e já se notar um abrandamento a partir de meados do XVIII. A partir de meados do século XX a economia Portuguesa teve (até 2000) um desempenho espetacular; mas é difícil identificar uma mudança cultural clara que tenha levado a isso.
Que fatores mais influenciam, então, o desempenho e a evolução económica de um país? Vejamos um exemplo bastante elucidativo. Na cadeira de Economia de Desenvolvimento que tenho lecionado em várias universidades, mostro sempre aos alunos a imagem seguinte e pergunto se sabem do que se trata:
Por vezes, alguém diz: É a Coreia.
De facto, é uma fotografia de satélite da península da Coreia, vista do espaço, à noite. É uma imagem usada por alguns economistas da área de desenvolvimento, porque ilustra bastante bem as consequências do funcionamento de diferentes instituições políticas e económicas num quadro em que, do ponto de vista cultural, o povo é o mesmo.
Até à divisão efetuada no início da década de 1950, as Coreias do Norte e do Sul constituíram, durante séculos, um único país, com um riquíssimo passado comum: para todos os efeitos, é só um povo, que fala a mesma língua, e possui a mesma história e a mesma cultura.
A divisão política destes países nos últimos anos permite controlar a importância destes fatores genéticos e culturais, uma vez que apenas as instituições políticas, económicas e sociais passaram a ser diferentes.
A este propósito, sobre a forma como as imagens de satélite podem revelar diferenças significativas de caráter económico entre países e regiões, é interessante consultar um dos artigos mais interessantes publicados nos últimos anos acerca da medição do crescimento económico, “Medindo o crescimento económico através do Espaço”.
Como se pode observar na imagem acima apresentada, o resultado de uma divergência que tem pouco mais de meio século é espantoso. Note-se que a Coreia do Norte até partiu em situação de vantagem (a capital política era lá, para além de possuir muito mais recursos naturais), mas a divergência económica não poderia ter sido maior.
A Coreia do Norte é hoje um dos países mais pobres do mundo, enquanto a Coreia do Sul é um dos mais ricos: o PIB por pessoa já ultrapassou o da França, tendo partido de uma situação de pobreza extrema há pouco mais de 60 anos, quando acabou a guerra civil!
Não estou a dizer com isto que os fatores culturais não tenham a sua importância. É evidente que têm. Alguns trabalhos de investigação recentes mostram que os seus efeitos, em muitos casos, não podem nem devem ser menosprezados. Voltaremos a este tema numa próxima oportunidade.
Mas, com as situações concretas discutidas atrás, gostaria de colocar em questão, pelo menos para já, a ideia demasiado simplista, infelizmente muito vulgarizada, segundo a qual a “cultura” de um povo constitui a razão de ser essencial do desempenho económico de um país.
No caso de Portugal, não pode ser essa, de forma alguma, a principal explicação para o seu atraso económico relativamente a outras nações. Isto é verdade tanto no que respeita ao processo desenvolvido ao longo do século XIX, como no que concerne aos problemas atuais. Há que encontrar outras explicações.
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