O backstage das ações populares

  • Mariana Soares David e Filipa Castanheira de Almeida
  • 16 Dezembro 2021

Nos últimos anos tem sido registado um aumento substancial de ações populares de grande complexidade e mediatismo, culminando em pedidos de indemnização milionários.

Nos últimos tempos, as ações populares têm ganho uma importância crescente no dia-a-dia da justiça, e dos meios de comunicação social.

O direito de ação popular está consagrado no artigo 52.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa desde 1976, e está regulamentado pela nossa lei desde 1995, por via da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto. Não obstante, nos últimos anos, tem sido registado um aumento substancial de ações populares de grande complexidade e mediatismo, culminando em pedidos de indemnização milionários, alegadamente, em prol de determinados interesses difusos ou coletivos.

Estas ações judiciais distinguem-se das demais pela ampla legitimidade para a respetiva propositura – permitindo, a quem não é titular de um interesse pessoal e direto, o acesso à justiça para defesa de interesses de uma certa coletividade – e pelo tipo de interesses, de natureza difusa, que visam tutelar – a saúde pública, o ambiente, a qualidade de vida, os consumidores, o património cultural e o domínio público.

Porém, a ratio e o propósito destas ações populares nem sempre têm espelho no seu quotidiano judicial e, a nosso ver, existem quatro aspetos da própria lei que contribuem para essa circunstância:

  1. ao conferir legitimidade às associações (independentemente do número de associados) e fundações defensoras daqueles interesses, desde que se verifiquem determinados requisitos, sucede, não raras vezes, estarmos perante entidades constituídas por quem, simultaneamente, as representa neste tipo de ações e delas se serve para sua autopromoção, pondo em causa os mais elementares deveres deontológicos por que se rege a advocacia;
  2. ao permitir que o autor da ação popular represente todos os titulares do interesse em causa, sem necessidade de obtenção de mandato ou autorização, impõe-se a cada potencial interessado o ónus de tomar conhecimento desta ação – particularmente exigente quando a divulgação da sua existência é feita através do sistema eletrónico dos tribunais, que o cidadão comum não consulta, ou através de um discreto anúncio nos Classificados de um jornal à escolha do Tribunal – e de se autoexcluir, caso não concorde com a mesma ou não pretenda ser representado por quem a move; e, por conseguinte, permite-se que milhares de pessoas se vejam acorrentadas a uma decisão que as afeta mas que não puderam influenciar e que as impede de propor nova ação para sua defesa;
  3. ao isentar a ação popular do pagamento de custas salvo manifesta improcedência do pedido, legitima-se a propositura abusiva de ações desta natureza e a dedução de pedidos com valores exorbitantes – que nunca seriam formulados caso fosse aplicável o regime geral de custas judiciais – com o intuito evidente (e, por esta razão, bem-sucedido) de afetar a situação económica da empresa demandada;
  4. ao permitir o financiamento deste tipo de ações por terceiros, que beneficiarão também deste regime especial de custas, mas cujo interesse é tão-só receber uma percentagem – por vezes, elevada – do valor da indemnização que vier a ser fixada judicialmente, sem que haja qualquer ligação com o interesse público que a ação popular visa tutelar, aceita-se o aproveitamento deste instrumento jurídico para a prossecução de interesses pessoais e para o afastamento da tutela de interesses públicos.

Naturalmente, não se sugere que o legislador tenha sequer equacionado estas fragilidades, mas 26 anos volvidos desde a aprovação da Lei n.º 83/95, atenta a sua crescente utilização e o modo como tem sido conduzida por alguns operadores jurídicos, nalguns casos recorrentemente, valeria a pena incluir este diploma na agenda legislativa pós-Covid.

  • Mariana Soares David
  • Advogada sénior da Morais Leitão
  • Filipa Castanheira de Almeida
  • Associada principal da Morais Leitão

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