O censor censurado

O digital está no meio da guerra comercial entre a China e os EUA. A seguir à Huawei, chegou a vez do TikTok.

Quando o Presidente e o Secretário de Estado da nação mais importante do planeta se dão ao trabalho de atacar publicamente uma app como um produto ao serviço do Partido Comunista chinês, vale a pena perceber o que se está a passar. A guerra comercial entre Pequim e Washington não explica tudo.

Trump é sempre primário e vingativo, o que ajuda a explicar porque se deu bem com Kim Jong Un e porque nunca entendeu a Rússia ou a China. Este caso será mais um em que a sua ação será influenciada por um acontecimento externo: o papel que o TikTok desempenhou no fracasso do seu comício do mês passado não foi esquecido e a aplicação surge agora como um alvo aparentemente fácil.

Por isso se espera alguma ação governamental, mas isso será mais difícil do que parece. E isso revela o aspeto mais interessante de toda esta história: quão difícil é para um governo ocidental controlar a dimensão tecnológica – e limitar a existência de uma simples aplicação. Do ponto de vista retórico, é complicado para um executivo americano argumentar que a recolha de informações é um risco de segurança.

Basicamente tem sido essa mesma recolha massiva de dados que permitiu às empresas americanas construir os seus monopólios globais na internet de consumo, e a invasão massiva de privacidade nunca perturbou Washington.

A maneira mais fácil para conseguir o desejado bloqueio seria inserir a empresa responsável pelo TikTok na lista de entidades banidas de trabalhar com americanos, impedindo a Apple e a Google de fazer negócios com eles. Mas a verdade é sempre mais subtil – e complexa.

Mesmo os boicotes mais determinados à Huawei por causa dos riscos de segurança associados ao 5G incluíram uma série de exceções, de forma a permitir que os americanos continuem a tomar parte na definição de padrões para a nova metodologia de comunicações. Ainda assim é possível que as gigantes tecnológicas desafiassem a ordem: as multas são pífias para a sua dimensão e não afetariam os resultados anuais. E teriam do seu lado o poderoso argumento de recusar criar um precedente, deixando que seja um governo a ditar os serviços prestados por estas companhias.

Mas, mesmo que se conseguisse expulsar a aplicação das lojas oficiais, há formas alternativas para os utilizadores instalarem produtos nos seus smartphones. No caso americano, que nem consegue fazer os seus cidadãos adotar o uso generalizado de máscaras para proteger a saúde, seria muito difícil garantir uma intromissão ao nível do aparelho pessoal que cada um carrega consigo.

Mesmo que fosse criada legislação para visar especificamente a aplicação TikTok, ela poderia ser desafiada no Supremo Tribunal americano, visto que em várias instâncias judiciais o código informático tem sido protegido pelas garantias concedidas à liberdade de expressão, com proteções constitucionais que não podem ser ultrapassadas.

Claro que há aqui uma tremenda dose de ironia: o TikTok é um produto da política chinesa centralista e como tal não escapa ao braço vigilante de um dos sistemas políticos mais repressivos do planeta. Mas basicamente este caso “EUA vs TikTok” é um exemplo prático de quão difícil é ao poder legislativo e executivo (que representa os cidadãos) controlar a dimensão tecnológica. Culturalmente, a situação europeia é diferente; mas não ao nível legislativo, pois a balança de poder pende sempre a favor da tecnologia.

Ler mais: O Research Handbook on Human Rights and Digital é uma obra académica, com um texto mais seco do que as recomendações que aqui costumam aparecer. Mas quem quiser explorar este tema faz bem em começar por aqui, porque abre caminhos para os tópicos que cruzam lei, direitos humanos e poder.

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