O “day after”

  • João Paulo Feijoo
  • 11 Abril 2020

Como iremos trabalhar e relacionar-nos de agora em diante? As incertezas são muitas e dependem de muitos fatores, e as previsões são prematuras e arriscadas.

Num momento em que o ritmo da pandemia dá os primeiros sinais de abrandamento entre nós e que a saturação nos faz pensar cada vez mais no “day after”, é inevitável interrogarmo-nos sobre como iremos trabalhar e relacionar-nos de agora em diante. As incertezas são muitas e dependem de muitos fatores, e as previsões são prematuras e arriscadas.

Contudo, os sinais estão no meio de nós e, ainda que ténues, talvez estejam já a apontar para alguns dos futuros possíveis que por aí virão. Proponho-vos por isso um pequeno exercício de formulação de hipóteses.

O regresso do longo prazo. É cada vez mais claro que as consequências desta crise podem ultrapassar tudo o que as gerações nascidas no pós-guerra experimentaram. “Vai correr tudo bem”? Quero acreditar que sim, mas vai demorar. E a melhor maneira de o garantir é ter uma visão clara do futuro que queremos – “começar com o fim em vista”, como diria Covey – e de perseverar nela. Pode ser que isto nos leve de volta a hábitos de planeamento a prazo que, nas últimas décadas, tínhamos trocado por práticas mais reativas e oportunistas para melhor responder à turbulência e à volatilidade em que vivíamos. Para que tal seja possível, porém, precisamos de um grau de consenso, do âmbito local ao plano global, que ajude a controlar a ambiguidade e a volatilidade.

A irrupção da telepresença. Quando as restrições forem levantadas, haverá num primeiro momento uma “explosão de convívios”: libertos do confinamento, vamos querer recuperar em pouco tempo todo o tempo perdido. (Ou talvez não, se o relaxamento for gradual). Depois, aos poucos, alguns irão ter saudades da conveniência das videoconferências e do trabalho a domicílio, da flexibilidade de horários, da ausência do trânsito nas horas de ponta, da alimentação mais saudável. Outros talvez se lembrem que o confinamento os levou a aproveitar a tecnologia para reatar relações remotas e até aí negligenciadas. As empresas irão olhar para os custos, e os ambientalistas argumentarão contra a irracionalidade das viagens aéreas em negócios. A produção física robotizar-se-á mais ainda. A memória do risco de contágio talvez faça os espetáculos para grandes multidões perderem popularidade, e assistamos à sua gradual migração para o online. Voltaremos às ruas, mas porque não mais vezes a pé e sem sair do nosso bairro? Ou talvez, umas vezes por semana, para um “workspace de proximidade” onde possamos trocar ideias e ampliar a nossa rede de contactos?

Menos discriminação de género. Uma das razões da discriminação profissional das mulheres é a valorização absurda e persistente no “presentismo”, que as sacrifica de forma desproporcionada e inclina o tabuleiro de jogo contra elas. A expansão do teletrabalho será um golpe mortal no presentismo e contribuirá para nivelar o terreno. A redução das viagens profissionais terá um efeito análogo ao nível dos quadros superiores. A presença simultânea de homens e mulheres em casa facilitará uma maior partilha das tarefas domésticas.

O estigma da idade. A muito maior vulnerabilidade das gerações mais velhas perante a pandemia – não apenas dos grandes idosos, mas também dos mais velhos em idade ativa, bem maior do que dos jovens – fragilizará o discurso contra o idadismo e fará renascer práticas de discriminação. Para quê investir nos mais velhos se, perante outras ameaças, tivermos novamente de os resguardar numa redoma sem poder contar com eles a cem por cento? Serão o primeiro grupo a ejetar para a periferia do ambiente de trabalho virtualizado, para que possamos proclamar que continuamos a contar com eles e a valorizar o seu contributo, mas onde também será mais fácil “desligá-los”.

Nalgumas das suas combinações, estas hipóteses não configuram um futuro necessariamente distópico. Nem por isso eu gostaria que todas elas se materializassem. Mas são hipóteses plausíveis, dotadas de racionalidade, que seria imprudente não ter em conta quando compusermos os cenários do futuro que havemos de querer construir.

E temos uma alternativa. Entre os muitos ditos que se atribuem a Peter Drucker, há um que não me sai da cabeça: “A única coisa que sabemos acerca do futuro é que será diferente. Tentar prevê-lo é como conduzir um automóvel por uma estrada sinuosa, com os faróis apagados e a olhar para o retrovisor. A melhor maneira de prever o futuro é sermos nós a criá-lo.”

Não precisamos de esperar pelo fim do confinamento.

*João Paulo Feijoo é vice-presidente do conselho fiscal da APG

  • João Paulo Feijoo

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