O modelo de negócio que estragou a internet
A publicidade direcionada está na base do modelo comercial que predomina na internet e é a responsável pela subversão de toda a rede. Dá para acabar com ele?
Algures pelo início desta década, explorei a possibilidade de comprar um sofá através da internet. Vi alguns serviços e acedi a uma loja online que, a partir do Reino Unido, geria um negócio de dimensão apreciável. A razão pela qual me lembro disto é que “a internet” não deixou que me esquecesse: durante anos, recebi anúncios daquela loja de sofás no meu mural do Facebook e nas pesquisas no Google e ainda hoje, uma ou duas vezes por ano, lá levo com o anúncio outra vez. Não interessa que tenha acabado por comprar o meu sofá numa loja tradicional, em Lisboa, nem que isto tudo tenha ocorrido há quase dez anos. É o mito da publicidade personalizada, que supostamente facilita a vida aos utilizadores/consumidores.
Como quase tudo o que é promovido pelo Facebook, esta é uma mentira de gigantescas proporções que só serve para enriquecer os seus donos e perpetuar um modelo de negócio que tratou de enterrar o ideal da internet descentralizada e livre. Para assinalar o décimo quinto aniversário do Facebook, Mark Zuckerberg escreveu um artigo no Wall Street Journal em que voltou a repetir que os utilizadores querem este tipo de publicidade direcionada. A verdade é que os utilizadores não sabem que é assim que funciona a plataforma e, quando sabem, rejeitam liminarmente o modelo. Claro que a ignorância não é desculpa: damos voluntariamente as nossas informações em troca de um serviço “gratuito” e com isso contribuímos para destruir a internet tal como foi concebida.
O problema é que é esse mesmo mecanismo que está a matar a privacidade, a minar a democracia, a aumentar a crise da imprensa livre e a promover genocídios. A rendição da internet ao modelo comercial do clique por anúncio torna a rede numa gigantesca guerra de conteúdos em que ganha o pior e baixa o nível coletivo da maior invenção da humanidade. Nada que perturbe os senhores de Silicon Valley. Ao mesmo tempo que explora os dados dos utilizadores para enriquecer, Zuckerberg volta a complicar a vida a quem tenta impedir que o Facebook destrua a democracia.
Esta semana a plataforma bloqueou o acesso à ProPublica, um serviço noticioso de investigação que se especializa na investigação da qualidade cívica e que já ganhou um Pulitzer de Serviço Público. O que a Propublica fazia era um ato de transparência: expunha aos utilizadores a forma como os seus perfis eram utilizados no Facebook e que anúncios chegavam a quem, permitindo o escrutínio e forçando a transparência que são essenciais nas sociedades liberais.
Mas o Facebook não gosta do escrutínio e ainda menos da transparência. Por isso está com dificuldades em lidar com o GDPR instituído pela União Europeia, que bem pode pôr em causa todo o modelo de negócio da plataforma. E, se isso levar a reformular uma pequena parte da Internet, ganhamos todos. Este tema está longe de ser consensual e muitos decisores não dominam o tema nem sequer o compreendem na totalidade – e, à falta de melhor, aqui fica uma boa forma para decidir quem nos merece representar no Parlamento Europeu.
Ler mais: Jaron Lanier é um visionário digital. Fundou empresas de jogos, participou na explosão da internet e trabalha, desde 1985, em realidade virtual. Não há muitos que sejam mais avançados que ele. E é ele mesmo que escreve um manifesto público cujo nome deixa pouco à imaginação: Ten Arguments for Deleting your social Media Accounts Right Now. Vale a pena conhecer, porque é a versão resumida das melhores razões para fugirmos ao domínio das redes e tentarmos construir a internet como ela poderia ser.
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