O mundo em mudança pelos olhos dos chineses
Na China olha-se para o conflito na Ucrânia com uma superioridade moral que não é diferente da do Ocidente. O que muda são os argumentos que a sustentam.
Qin Gang foi demitido de ministro dos Negócios Estrangeiros da China esta semana, após 30 dias desaparecido. A saída foi justificada por motivos não especificados de saúde e as referências à sua atividade recente apagadas dos sites oficiais depois de ser substituído pelo seu predecessor, o veterano Wang Yi. Tudo na maior opacidade, bem ao estilo do regime de Pequim.
O que sabemos sobre o posicionamento da política externa é um guião estudado e rígido, que além de veicular a mensagem oficial cria uma cortina que esconde a visão que as elites têm sobre temas como a guerra na Ucrânia, a proximidade com Moscovo ou a tensão por causa de Taiwan.
No Ocidente tendemos a olhar para estas realidades pela lente do Ocidente. O que não permite uma compreensão abrangente sobre elas ou a forma como poderão evoluir, o que é determinante num momento de mudança como o que o mundo atravessa.
Alicja Bachulska e Mark Leonard, do European Council on Foreign Relations (ECFR), deitaram mãos à tarefa de ouvir académicos e pensadores chineses, consultar artigos sobre política internacional e documentos oficiais. Verteram depois as conclusões do que ouviram e leram num artigo publicado no site do ECFR. Os relatos são anónimos, mas nem por isso refletem uma crítica ao regime, antes pelo contrário. Permitem, ainda assim, ter uma visão chinesa, que inclui o que está por detrás da cortina.
Segundo os autores, um dos pensamentos dominantes é que “os EUA estão a instrumentalizar a guerra na Ucrânia e o envolvimento da NATO, como parte do esforço não só para conter a Rússia mas também a China”. Uma das evidências apontadas é o reforço da influência americana no indo-pacífico, patrocinando iniciativas como o Quadrilateral Security Dialogue, que reúne os EUA, a Austrália, a Índia e o Japão ou o pacto de segurança AUKUS.
Para a maioria dos académicos, Washington está a beneficiar com a guerra, através do comércio de energia para a União Europeia, com o gás natural liquefeito norte-americano e mesmo o petróleo a substituir importações que vinham da Rússia. É a Europa que está a suportar o custo da guerra, defendem. Também a indústria militar norte-americana está a ser beneficiada com o fornecimento de armas à Ucrânia.
São apontadas falhas aos EUA. Ainda que Washington seja capaz de mobilizar os seus aliados tradicionais, consideram que o esforço para fazer o mesmo em relação aos países desenvolvidos fracassou em larga medida, não conseguindo o apoio de muitos países de África, da América Latina ou da Ásia, que preferem manter-se à margem.
Não são apenas os EUA que não o conseguem, acrescente-se. A recente cimeira entre a União Europeia e a Comunidade de Estados da América Latina e das Caraíbas ficou marcada pela ausência de uma condenação inequívoca da invasão russa da Ucrânia na declaração final, por falta de acordo de todos os países. E foi evidente a pressão para que se chegue rapidamente a uma solução negociada que devolva alguma estabilidade à geopolítica internacional.
É também o que defende Pequim, sabendo que essa posição o aproxima ao sul global. Conquistar as boas graças dos países não alinhados tornou-se uma prioridade para a política externa chinesa, que oferece modelos de cooperação que não implicam uma ocidentalização. “Vários intelectuais chineses afirmam que Pequim quer construir um mundo mais plural, com múltiplos centros de poder”, relatam Alicja Bachulska e Mark Leonard.
Putin segue a mesma estratégia. Na sexta-feira, anunciou um compromisso para uma nova “ordem mundial multipolar” na cimeira Rússia-África, apesar de só comparecerem 17 chefes de Estado. Em 2019, tinham sido 43.
Inequívoca é também a opinião de que a China tem mais a ganhar do que a perder ao ficar ao lado da Rússia. Há uma enorme frustração e um tom marcadamente crítico em relação ao desempenho militar de Moscovo, incapaz de assegurar uma vitória rápida e, por isso, agora remetido a uma “guerra de atrito” sem fim à vista. Por outro lado, “se os EUA são o principal rival da China, é crucial que não derrotem nem humilhem a Rússia”.
Como sublinham os autores, sendo Xi Jinping e Vladimir Putin “líderes dos dois maiores estados autoritários do mundo, ambos com ambições revisionistas, o seu objetivo comum é redesenhar a ordem internacional imposta pelos EUA de forma a que seja mais seguro para as autocracias e a sobrevivência dos seus regimes”.
Pequim só não vai mais longe no apoio a Moscovo porque teria muito mais a perder (a sua economia ainda está muito dependente do Ocidente) do que a ganhar. Ainda, porque o caminho é, cada vez mais, o da autossuficiência.
Há muito que se diz que a guerra na Ucrânia e a reação do ocidente está a ser observada na China como um laboratório para uma eventual invasão de Taiwan. Oficialmente, Pequim rejeita analogias, mas os académicos e intelectuais fazem esse exercício. Muitos acreditam que tal como na Ucrânia, os EUA não se envolveriam diretamente no conflito, fornecendo apenas armamento a Taiwan. Outra opinião comum é que os políticos americanos usam Taiwan para reduzir a polarização, ao criar um espaço em que Conservadores e Republicamos partilham a mesma visão. Por outro lado, a maioria não acredita que será Pequim a iniciar um conflito militar por causa da ilha, apontando que Xi Jinping tem sido reativo e não proativo.
Não é só na Europa que a crença sobre o papel da interdependência económica na promoção da paz saiu fragilizado do conflito. “Uma das maiores lições que os observadores chineses tiraram da guerra na Ucrânia é que a política e a segurança superam a economia“, escrevem Alicja Bachulska e Mark Leonard. As sanções, que os EUA já estão a aplicar à China na tecnologia, tornaram-se uma preocupação central, reforçando a necessidade de uma transição para uma economia muito mais dependente do mercado interno do que do externo.
As leituras feitas pelos intelectuais e académicos chineses têm omissões e contradições. Os EUA estão a instrumentalizar uma guerra que não existiria sem os desejos imperialistas de Vladimir Putin. A energia que deixou de vir da Rússia passou a vir dos EUA, mas também da Noruega, da Argélia, do Qatar ou da Nigéria. As fábricas de armamento americanas são as que mais faturam, mas há também fornecedores na Europa ou na Austrália.
A China também instrumentaliza a guerra, através da subserviência em que colocou Moscovo ou na tentativa de arregimentar países na América Latina ou em África. Vários, aliás, manietados pelas enormes dívidas contraídas com Pequim, que as usa como chantagem na política externa. Defende-se o princípio da independência e da soberania territorial, mas permite-se a chacina diária dos ucranianos.
Os relatos mostram como na China se olha para o conflito com uma superioridade moral que não é diferente da do Ocidente. O que muda são os argumentos que a sustentam. São duas visões antagónicas do mundo e cada vez mais distantes. Espera-se que sejam capazes de coexistir pacificamente.
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E na próxima semana?
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As propostas recebidas no âmbito do concurso público internacional para a privatização da companhia aérea são abertas na segunda-feira. O Governo regional dos Açores colocou à venda um mínimo de 51% e um máximo de 85% do capital social da Azores Airlines. Quando pediu a extensão do prazo, em maio, a SATA referia que 31 entidades tinham pedido o caderno de encargos.
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A estimativa rápida da inflação em julho sai também na segunda-feira. No mês passado, a variação homóloga do índice de preços travou para 3,4%. Na Zona Euro, é esperado um ligeiro alívio, dos 5,5% para os 5,3%.
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