O país que investe em linhas, mas não chega a horas

Não é aceitável que o Estado e as suas empresas falhem como falham e é normal que as pessoas se revoltem. As novas linhas serão essenciais, mas não bastam obras.

Durante os próximos anos, o desenvolvimento de infraestruturas em Portugal será quase desenfreado. Novas travessias sobre o Tejo e sobre o Douro, a construção da linha do TGV, novas linhas do Metro ou de suburbanos no Porto, a conectividade do quadrilátero do Minho ou a requalificação e eletrificação de linha ferroviária um pouco por todo o país: os projetos são muitos. A bem da verdade, a aposta na infraestrutura ferroviária, seja ligeira, seja pesada, parece ser daquelas com impacto quase indiscutível e imediato.

Basta olhar para exemplos como o de Paredes, desde a entrada na Área Metropolitana do Porto, ou o do Marco de Canaveses, desde a chegada do comboio suburbano, para perceber o desenvolvimento que a ferrovia aporta através da aproximação temporal à grande cidade.

Se o aumento galopante dos preços da habitação levanta problemas fortíssimos para as cidades, a aposta numa rede de transportes públicos fiável e abrangente é, certamente, uma resposta em que devemos pensar. Se passar a ser mais rápido, cómodo e seguro chegar a Lisboa, ao Porto ou Braga de transporte público vindo dos subúrbios, então morar lá torna-se uma opção. Da mesma forma, ao alargar as redes de transportes, alargamos a panóplia de cidades ou concelhos habitáveis para quem tem de pendular diariamente até ao seu local de trabalho.

Com isto defendo que é vital, tanto para combater os preços da habitação, como para tirar carros das estradas ou dar comodidade à vida dos cidadãos, termos uma rede de transportes larga, densa e bem pensada. Os transportes são essenciais para a vida quotidiana de milhares, até milhões, de portugueses. E também é certo, para aqueles, como nós, que todos os dias saem de casa para usar transportes públicos, que a inoperabilidade de boa parte dos sistemas só tem uma resposta: é inevitável concluir que aqueles que os desenham nunca lá puseram os pés. Este é o problema de boa parte dos serviços públicos em Portugal, os decisores não os usam. A escola pública não é para os seus filhos. Os hospitais públicos não são para as suas famílias. Os comboios, os metros e os autocarros são apenas para serem usados em campanhas eleitorais.

Se um qualquer decisor tivesse de enfrentar diariamente o serviço lastimável que a CP presta aos seus clientes, é impossível imaginar que tudo se mantivesse na mesma. Se um qualquer decisor tivesse de ir para as portas do Centro de Saúde às 6h30 para ter vaga, como muitos de nós já fomos, é impossível imaginar que tudo se mantivesse na mesma.

Alguém acredita que foi um utilizador de autocarros que desenhou a abstrusidade da Unir? Ou os horários de quase serviço suburbano do Metro de Lisboa? É evidente que não. Quantos governantes ou deputados enfrentam diariamente os atrasos da linha de Sintra e o péssimo serviço de resposta da CP? Quantos já falharam compromissos por atrasos de comboios? Poucos ou nenhuns.

Para quem quotidianamente depende de transportes públicos, atrasos são normais, comboios suprimidos por falta de revisores são normais, comboios com uma carruagem por falta de mais quando duas eram poucas são normais. Este é o dia-a-dia de muitos de nós que estudam ou trabalham para que o país seja melhor. Fielmente pagam os seus impostos, honram os seus compromissos e esperam que o Estado honre os dele.

É a estes cidadãos que o Estado mais falha. Greves de um mês ou de várias semanas não são aceitáveis. Greves sem serviços mínimos não são aceitáveis. Atrasos crónicos não são aceitáveis e também não é aceitável que as empresas não assumam a responsabilidade pelas consequências que provocam na vida das pessoas.

Neste desabafo de hoje, acabei por focar nos transportes, mas poderia tê-lo feito em qualquer serviço público, porque a análise seria similar. Não é aceitável que o Estado e as suas empresas falhem como falham e é normal que as pessoas se revoltem. As novas linhas serão essenciais, mas não bastam obras: é preciso que os comboios funcionem, que os autocarros passem, que os cidadãos confiem. No fim, devia haver consequências. Se a qualidade do serviço é lastimável, temos de retirar ilações, repensar se esta organização faz sentido, se faz sentido que o Estado se mantenha monopolista.

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