O poder ao povo
Uma das razões do sucesso dos populismos é a promessa da devolução do poder ao povo. A promessa do cumprimento de uma “verdadeira” democracia. Escusado será dizer que esta é uma falsa jura.
O fenómeno político mais escalpelizado no último par de anos é o da emergência de novos populismos nas democracias liberais. Sempre que se aproximam eleições tocam as sirenes de alarme de risco de sucesso eleitoral de líderes ou forças populistas. Mas importa não cair na tentação de classificar como de populista qualquer crítica aos representantes estabelecidos, nem tão-pouco qualquer esforço da parte destes para reaproximar o poder do povo. Autores como Cas Mudde e Jan-Werner Müller têm dado um importante contributo teórico para que consigamos balizar o que no palco político contemporâneo se pode classificar como populismo.
A tensão com o populismo é intrínseca às democracias liberais: se a democracia é o governo do povo, por que não governa o povo? Já se sabe que as democracias modernas são sistemas de governo representativos, em que o povo não governa diretamente, mas sim através de representantes. Para utilizar os termos da clássica, e notável, síntese de Abraham Lincoln, pode não ser de facto o governo do povo, mas é o governo pelo povo e desejavelmente para o povo.
Uma das razões do sucesso dos populismos é a promessa da devolução do poder ao povo. Ou seja, a promessa do cumprimento de uma “verdadeira” democracia. Escusado será dizer que, como muito que se autointitula “verdadeiro”, esta é uma falsa jura.
No discurso populista, a oposição entre o povo “puro” e uma elite moralmente corrupta é permanente. Mas se o anti-elitismo é um elemento constituinte do populismo, é simplista, e mesmo enganador, (des)considerar como populista qualquer crítica ou mesmo oposição às elites. Mais do que o anti-elitismo é o anti-pluralismo que consubstancia a retórica (e a prática) dos demagogos populistas.
O populista não é um mero representante do povo, é o porta-voz do “verdadeiro” povo. A falácia é dupla. O populista apresenta-se como a única interpretação autêntica da vontade do povo, que por sua vez é constituído apenas pela massa una dos seus apoiantes. Qualquer opositor político é ilegítimo, qualquer voz ou grupo social dissonante não é digno de ser parte do “demos”. Os perigos são conhecidos e nas suas versões históricas mais extremadas deram origem aos totalitarismos do século XX.
Foi precisamente contra os riscos do ressurgimento de novos totalitarismos que as democracias liberais se protegeram ao longo da segunda metade do século XX, reforçando o seu carácter representativo e os instrumentos do Estado de direito, com arquiteturas constitucionais recheadas de freios e contrapesos aos diversos poderes, inclusive, e sobretudo, o poder das maiorias populares.
As democracias liberais vivem, e viverão, com uma tensão permanente entre o seu elemento democrático, que promete o governo do povo através da regra da maioria, e o seu elemento liberal que visa garantir os direitos de todos os cidadãos, contra os abusos do poder e as tiranias de um, de poucos ou das maiorias. No meio desta tensão, não podemos escamotear que as democracias liberais enfrentam crises de representação das quais se alimentam os novos populismos. É por isso fundamental que as regras do Estado de direito se mantenham firmes na defesa dos valores inquebrantáveis da liberdade, mas é igualmente fundamental que os representantes não se esqueçam de que a soberania reside no povo e não em palácios de marfim e veludo ou em esconsas sedes partidárias.
É imperioso que a democracia representativa reinvente formas de se religar aos representados, acompanhando o ritmo e as transformações do mundo pós-industrial. É essencial que representantes e governantes moderados, e imbuídos do espírito de diversidade e de pluralismo próprio das sociedades modernas, sejam capazes de se reaproximarem dos cidadãos e de criar canais de devolução do poder ao povo e não deixar o monopólio dessa promessa à mercê da demagogia e da intolerância dos populismos.
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