
O purismo na politica, o liberalismo europeu e o papel da IL
A riqueza do liberalismo advém exatamente dessa capacidade de tolerar pessoas com ideias diferentes, e nunca de apostar numa única ideia.
Estou a ouvir sem parar o novo álbum dos Turnstile “Never Enough”, uma banda que veio do chamado Rock hardcore e que os puristas criticam por desvirtuar este estilo de rock metálico, enquanto novos públicos aproximam-se e transformam esta banda num dos fenómenos musicais mais esperançosos e numa das melhores bandas ao vivo atualmente (vamos poder testemunhar tal no Primavera Sound Porto neste próximo dia 14 de junho).
O purismo na política apenas conduz à polarização, à criação de estilos de liderança assentes na claque política e na criação de liderança, mas mais próximas de uma associação de estudantes do que numa liderança assente na capacidade de criar uma dinâmica de mudança e na gestão de todos os ativos, dentro e fora de um partido, que partilham de um mínimo denominador comum que permite encetar uma corrente que agregue e que cative o eleitorado (o publico alvo de um partido político).
Democracias em xeque: o avanço do purismo e a resistência liberal
As democracias liberais enfrentam, na actualidade, uma fase crítica de reconfiguração, impulsionada pelo crescimento de discursos e práticas políticas assentes num purismo ideológico. Esta abordagem, caracterizada pela rejeição de compromissos pragmáticos e pela fidelidade intransigente a valores identitários — sejam eles de matriz nacionalista, religiosa ou moral —, representa um desafio directo ao funcionamento das instituições liberais. Em tempos de crise e incerteza, esse discurso simplista e polarizador tende a conquistar sectores crescentes da população, muitas vezes desiludidos com a política tradicional (Mounk, 2018), à custa dos valores e princípios ideológicos dos partidos dito tradicionais.
Na Europa, a sucessão de choques sistémicos — desde a crise financeira de 2008, passando pela crise dos refugiados de 2015, até à pandemia de COVID-19 e à guerra na Ucrânia — alimentou a emergência de forças políticas iliberais. Estas emergiram também e em grande medida em resposta a um conjunto de leis que impuseram um conjunto de comportamentos vistos como os “corretos”. Partidos como o Rassemblement National (França), o Vox (Espanha) e a AfD (Alemanha) canalizam sentimentos de perda de controlo, rejeição da integração europeia e hostilidade face à diversidade. Estas forças apelam ao “povo verdadeiro” contra as elites, corroendo os pilares do pluralismo (Taggart & Szczerbiak, 2020). Ora, o extremismo de esquerda não se combate com o extremismo de direita, mas antes com uma adequação das políticas liberais a intervenções mais pragmáticos e mais perto dos problemas do dia a dia das pessoas.
Ao mesmo tempo, assiste-se à erosão do centro político e ao enfraquecimento dos partidos tradicionais. A clivagem entre esquerda e direita vai sendo substituída por uma divisão entre liberalismo e populismo. Enquanto o liberalismo defende aseparação de poderes, a protecção das minorias e o respeito pelas regras do jogo democrático, o populismo promove uma visão plebiscitária e majoritária da democracia, frequentemente hostil à independência judicial, à imprensa livre e aos direitos civis (Mudde, 2004; Levitsky & Ziblatt, 2018). Note-se que o próprio socialismo democrático também foi pervertido pelo populismo da esquerda (ver Governo da Geringonça em Portugal e o atual Governo em Espanha).
Nos Estados Unidos, a presidência de Donald Trump exemplificou a infiltração de lógicas populistas no interior de uma democracia consolidada. O seu discurso anti-institucional, o descredibilizar do sistema eleitoral e a tentativa de captura partidária do sistema judicial mostram como o populismo de direita pode funcionar como agente de erosão institucional (Fukuyama, 2022). A radicalização do Partido Republicano reflecte tendências que se observam também no espaço europeu.
Na América Latina, o populismo tem raízes históricas mais antigas e assume tanto formas de direita, como no caso de Bolsonaro no Brasil, como de esquerda, como no peronismo argentino, no chavismo venezuelano ou no lulismo brasileiro. A fragilidade das instituições, a volatilidade partidária e a personalização do poder tornam os sistemas democráticos mais vulneráveis a projectos iliberais, com efeitos duradouros sobre o Estado de direito (Weyland, 2021). Nestes contextos, o purismo ideológico expressa-se por via da retórica salvacionista, da estigmatização da oposição e da concentração de poder no Executivo.
Na União Europeia, apesar de limitações evidentes, os mecanismos de condicionalidade e vigilância institucional ainda oferecem resistência ao avanço de regimes iliberais. Casos como o da Hungria e da Polónia geraram reacções por parte das instituições europeias, revelando que a integração supranacional pode funcionar como barreira ao autoritarismo interno (Kelemen, 2020).
Apesar das diferenças contextuais entre Europa, América do Norte e América Latina, há padrões comuns: desconfiança nas elites, ressentimento identitário, polarização extrema e descrédito nas instituições representativas. O purismo político oferece respostas simples a problemas complexos, minando o espaço da deliberação democrática.
Neste cenário, o desafio para os defensores do modelo liberal não se limita à denúncia do populismo, mas exige uma renovação do pacto democrático, capaz de responder às exigências sociais e culturais do século XXI. A reinstitucionalização da política, a valorização do compromisso e a defesa firme dos princípios do Estado de direito são passos essenciais para garantir que as democracias não apenas sobrevivam, mas se fortaleçam.
O estado de direito e a separação dos poderes são a base das constituições liberais e são uma herança do liberalismo enquanto pensamento filosófico. Assim, o estado de direito e a separação dos poderes são a base das constituições liberais e são uma herança do liberalismo enquanto pensamento filosófico. O liberalismo é uma solução política que vale por si só e os primeiros a acreditar nisso deviam ser os liberais.
E para onde olha a Iniciativa Liberal?
A Iniciativa Liberal (IL) é ainda, ao contrário do partido Chega, uma força política emergente em Portugal, captando uma franja de eleitores insatisfeitos com a esquerda tradicional e o centro-direita clássico. No entanto, e nos últimos tempos, tem-se assistido a um reposicionamento discursivo, marcado por referências implícitas e explicitas a modelos vindos de fora da Europa.
A pergunta impõe-se: por que razão a liderança da IL tem ignorado as referências liberais mais sólidas e estáveis da Europa do Norte? Por que razão se prefere o choque à estabilidade, a retórica incendiária ao compromisso institucional? Não fará esta opção com que a IL se vá tornando uma cópia tardia do Chega?
Os países nórdicos — como a Suécia, a Noruega ou a Dinamarca — construíram sociedades onde o liberalismo económico convive com forte coesão social, políticas públicas eficazes e elevada confiança institucional. Nestes modelos, o mercado é valorizado, mas o Estado desempenha um papel na promoção da equidade e até da inovação. São exemplos de liberalismo pragmático, com resultados visíveis em educação, mobilidade social e sustentabilidade. Em suma, o liberalismo nunca, mas nunca, pode deixar de se preocupar com as aspirações da classe média!
Por contraste, os modelos que assentam numa lógica de ruptura total, com apelos à eliminação do Estado, ataques à imprensa, ao sistema judicial e a promessas radicais de “aniquilar a casta política”, mesmo que tendo algum programa económico mais liberal, devem sempre ser vistos mais como uma aproximação de modelos anarcocapitalistas, do que do liberalismo institucional europeu. Um Estado mais pequeno não é o mesmo que acabar com o Estado. Na estrutura social que a democracia foi construindo na Europa, não é possível negligenciar o contexto social, nem passar mensagens políticas que possam dar essa ideia.
A questão ganha maior acuidade quando, na IL, se diz pretender uma nova dinâmica e mais ousadia. Espero que esta não adote um tom de rutura e antagonismo, mas que posicione a IL como um partido que seja capaz de se afirmar como uma força reformista, europeísta e assente em um liberalismo pragmático e consistente na defesa da liberdade de escolha. Deveremos sempre não permitir que se vá para uma opção de fazer política baseada na desqualificação dos adversários, na personalização do poder e na erosão da mediação institucional.
A IL quer ser um partido liberal europeu ou um movimento anti-sistema com retórica importada de outros continentes? Até que ponto esta aproximação à lógica confrontacional é compatível com o espaço político português e com o espírito do liberalismo constitucional? Mais, a própria IL tem que demonstrar, de forma cabal. Que tolera internamente a diversidade de pensamento, que pratica a pluralidade e que não se pauta por uma gestão dos seus órgãos políticos assentes numa concentração de poderes: devemos ter uma autonomia dos órgãos locais e nunca a centralização na definição de listas de todas as eleições. Num partido tão adepto do mercado, porque é que nunca se testou um modelo de diretas para a escolha dos deputados e se prefere um modelo centralista e pouco transparente (tipicamente iliberal).
É importante sublinhar que o liberalismo europeu não é sinónimo de anulação do Estado, mas antes da sua racionalização. Não é um programa de destruição institucional, mas de modernização. As reformas liberais implementadas em países como a Estónia, os Países Baixos ou a Finlândia combinam eficiência económica com responsabilidade social — bem longe das visões ultraliberais que reduzem o papel do Estado a zero.
Em Portugal, onde a confiança nas instituições é baixa e o populismo cresce à direita, o liberalismo só poderá florescer se se apresentar como uma alternativa estável, transparente e institucionalmente credível. Se a IL se deixar seduzir, por exemplo, pelo estilo americano de choque e espetáculo, arrisca-se a perder o eleitorado moderado que rejeita tanto o socialismo burocrático como o populismo autoritário.
É legítimo que a IL procure referências internacionais. Mas seria mais coerente que olhasse para os liberais suecos, dinamarqueses ou neerlandeses — que sabem conjugar liberdade económica com inclusão — do que para outras geografias e realidade bem distantes do modelo europeu. Devemos ser ferozes combatentes de todos aqueles que misturam um discurso antissistema com um enorme culto da personalidade, reduzindo a política a uma guerra moral entre o “povo verdadeiro” e os “inimigos internos”.
Portugal é Europa. A nossa cultura política, as nossas instituições e o nosso lugar no mundo são moldados por valores europeus. Importar retóricas de outros continentes pode render atenção mediática a curto prazo, mas não constrói uma alternativa liberal duradoura nem credível. Se a Iniciativa Liberal quiser ser mais do que um protesto sofisticado, precisa de escolher claramente onde se posiciona: no espírito reformista da Europa do Norte ou na pulsão destrutiva do populismo latino-americano.
Sábado à noite, venham ver o que é música ao vivo num festival onde o purismo é tão somente a liberdade de cada um de escolher que banda ouvir e ver! A riqueza do liberalismo advém exatamente dessa capacidade de tolerar pessoas com ideias diferentes, e nunca de apostar numa única ideia. A diversidade é um dos maiores elementos de identificação entre o liberalismo e a sociedade, nunca nos esqueçamos que ser liberal é defender a liberdade de escolher!
Referências
- Fukuyama, F. (2022). Liberalism and Its Discontents. Profile Books.
- Kelemen, R. D. (2020). “The European Union’s authoritarian equilibrium.” Journal of European Public Policy, 27(3), 481–499.
- Levitsky, S., & Ziblatt, D. (2018). How Democracies Die. Crown Publishing.
- Mounk, Y. (2018). The People vs. Democracy: Why Our Freedom is in Danger and How to Save It. Harvard University Press.
- Mudde, C. (2004). “The Populist Zeitgeist.” Government and Opposition, 39(4), 541–563.
- Taggart, P., & Szczerbiak, A. (2020). “Putting Brexit into perspective.” Journal of European Integration, 42(7), 883–899.
Weyland, K. (2021). Populism in the Americas. Cambridge University Press.
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