Os vazios nas contas dos municípios

Há lacunas na informação sobre os municípios, sim. A principal é a intolerância do Governo face à crítica. Já os críticos, esses acabam exonerados.

O Conselho de Finanças Públicas (CFP) acaba de anunciar o adiamento do seu relatório sobre a evolução orçamental dos municípios portugueses. A razão para o adiamento é simples: a Direcção Geral das Autarquias (DGAL) está a implementar uma nova aplicação informática, em resultado da transição contabilística dos municípios para o Sistema de Normalização Contabilística das Administrações Públicas, e vai daí descontinuou [o] “acesso à informação orçamental e financeira dos municípios nas condições anteriormente estabelecidas para o CFP”.

Em comunicado, o CFP “expressa a sua preocupação com as lacunas de informação no tocante à execução orçamental de alguns municípios num ano em que se encontram a assumir novos compromissos de despesa relacionados com a pandemia, o que exigiria um maior escrutínio tempestivo que assim se encontra prejudicado”, e assim se fica a perceber como são tratadas as entidades de fiscalização em Portugal.

O processo orçamental em Portugal parou no tempo. De acordo com uma publicação recente da OCDE (“Budgeting and Public Expenditures in OECD Countries 2019”), Portugal é dos poucos países da OCDE que não pratica a chamada orçamentação por objectivos (“performance-based budgeting”).

Estamos na companhia da Grécia, como infelizmente é comum em assuntos de contas públicas, e do Luxemburgo, que sendo do tamanho de uma cidade e apresentando dos mais baixos níveis de dívida pública na Europa talvez não sinta a necessidade de mexer na elaboração do seu orçamento.

A orçamentação por objectivos, recorde-se, tem como propósito dotar os decisores políticos, e os cidadãos em geral, de indicadores que permitam aferir não só a quantidade de gasto público, mas sobretudo a qualidade do mesmo. Assim, na ausência de uma orçamentação por objectivos, que é internacionalmente reconhecida como uma boa prática orçamental, navegamos ao sabor do vento e de olhos vendados.

A falta de cortesia da DGAL perante o CFP, ao ter descontinuado um sistema sem assegurar que o novo sistema estaria imediatamente operacional, é uma espécie de venda colocada nos olhos do CFP. Mais, parece até feito de propósito, e a mando de outro alguém, ou não fosse o CFP a entidade responsável por auditar a qualidade do processo orçamental e do gasto público realizado pelos vários níveis da administração pública.

Relativamente aos municípios, aqueles que têm memória certamente recordar-se-ão da balburdia que era a gestão orçamental dos municípios antes da troika. Aqueles que têm memória também se recordarão da disciplina que a Lei dos Compromissos e dos Pagamentos Atrasados, implementada por imposição da troika – é certo que de supetão e não sem os seus custos –, veio trazer às contas municipais. Ora, é precisamente ao CFP, um tipo de instituição que na literatura anglo saxónica é habitualmente designada por “fiscal watchdog”, que cabe manter essa memória viva, uma função que neste caso está a ser obstaculizada pela DGAL.

A pandemia fez disparar a despesa pública e a dívida pública para níveis estratosféricos. É, pois, fundamental que existam mecanismos que sirvam não só para avaliar a qualidade do gasto público, mas que garantam também que todo o gasto público é escrutinado em tempo útil.

Em 2021, a despesa pública será de 100 mil milhões de euros. Para uma população activa de 5 milhões de pessoas, trata-se de uma despesa de 20 mil euros por pessoa em idade activa. Neste particular, os municípios fazem parte do perímetro orçamental do Estado e, a avaliar pelo recente “Anuário dos Municípios Portugueses 2019”, há ainda muitos municípios que continuam sem disciplinar as suas contas. É o caso de Lamego (prazo médio de pagamento de 409 dias em 2019), Penafiel (278), Mirandela (192), Paredes (185), Tomar (140), Évora (133), Vagos (98), Oliveira de Azeméis (93) ou Braga (78), só para citar alguns casos de municípios de média ou grande dimensão que insistem em pregar calotes aos seus fornecedores.

Em Portugal, não faltam entidades de fiscalização. É o caso do CFP que, pelos incómodos revelados pelo Governo, tem cumprido de forma cabal a sua função, excepto quando não o deixam trabalhar. E é também o caso do Tribunal de Contas que, a propósito da reforma de 2015 do processo orçamental, no seu parecer à conta geral do Estado de 2017, escreveu o seguinte: “Com base nas auditorias realizadas o Tribunal identificou a existência de atrasos significativos que têm vindo a comprometer o processo. Em agosto de 2018, a aplicação plena da LEO [Lei de Enquadramento Orçamental] foi adiada para o exercício orçamental de 2021 (…) Apesar de o modelo de orçamentação por programas para a despesa da AC estar previsto na LEO desde 2011 e ter sido reforçada a relevância da sua implementação com a revisão de 2015, o que é facto é que a orçamentação por programas tem sido substituída por uma mera repartição orgânica, mais centrada nos recursos do que nos resultados, por falta de indicadores específicos capazes de medir os resultados atingidos.”

Tal como o CFP, o Tribunal de Contas é outro exemplo que também não caiu no goto do Governo, vá-se lá saber porquê! Em suma, há lacunas, sim. A principal é a intolerância do Governo face à crítica. Já os críticos, esses acabam exonerados.

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