País real, país legal
A estratosférica hipocrisia do Primeiro-Ministro revela apenas que nada suspende o jogo político nem nada suspende a busca ilimitada pela acumulação de Poder.
A pandemia não suspende a Constituição. A pandemia não suspende a política. O Governo arranca os cabelos de indignação porque o Presidente da República promulgou três leis com as quais o Executivo discorda. O mesmo Governo que esteve em minoria absoluta no voto do Parlamento. O mesmo Executivo que só foi poder porque se formou uma “coligação negativa” para derrubar um Governo minoritário de Direita. Neste caso, a coligação é patriótica e progressista e demonstra o funcionamento de uma Democracia Avançada no limiar do Século XXI. A estratosférica hipocrisia do primeiro-ministro revela apenas que nada suspende o jogo político nem nada suspende a busca ilimitada pela acumulação de Poder.
A Constituição é demasiado importante para ser deixada apenas ao cuidado dos Constitucionalistas. Um texto politicamente vivo não pode estar reduzido ao rigor mortis de uma aula monocórdica perdida num anfiteatro de uma qualquer Faculdade de Direito. Este artigo é em technicolor, aquele artigo é em colour blind, esta interpretação viola o “espírito do legislador”, aquela perspectiva alimenta a “insegurança jurídica”. A política é demasiado complexa, demasiado imponderável, demasiado urgente, demasiado imprevisível, para poder ser reduzida à conformidade de um texto estático e à autoridade incontestável de uma corporação intocável. Em Democracia não há lugar para Tribunais do Santo Ofício.
Observem ainda os portugueses o comportamento histérico do PCP. Votou contra todas as revisões constitucionais, tratou sempre a Constituição como se esta fosse uma emanação de um Tratado de Marx, superior, definitivo, divino, iluminado. Devia odiar esta Constituição, mas não, é o maior defensor da Lei Fundamental com a feroz fidelidade que ilude o vácuo assustador deixado pelo espectro do Comunismo. Que Deus os acuda.
Há em Portugal o fétiche das leis. Há um problema, faz-se uma lei. A lei não é regulamentada, fica esquecida, perdida, atrofiada numa gaveta, pois faz-se outra lei para substituir a lei desprezada. Somos uma República Legalista e não uma República Política. Já foram inventadas todas as leis para desenvolver Portugal, agora só falta mesmo é desenvolver Portugal. O que o País precisa é de muita e de muito boa Administração, pois a política é o reino do confronto e da divisão. A pergunta a que ninguém responde é por que razão Portugal não se desenvolve.
O primeiro-ministro é um acrobata da Constituição, um manipulador da vontade do Parlamento, um homem de poder que pensa que a política se deve servir da Constituição. Mas o Presidente da República está mais próximo da razão quando afirma que é a Constituição que serve a política, o que é uma frase de um político que conhece o mundo da política e sabe que Belém não é uma Faculdade de Direito.
Ninguém pretende diminuir a importância da Constituição, mas ninguém pretende transformar a interpretação constitucional na variante de um novo fundamentalismo inspirado na imobilidade de uma Sharia secular. Enquanto os portugueses dormem na rua, recorrem a bancos alimentares, suspendem créditos e compras, afogam-se na estagnação e na pobreza, afundam-se em dívidas e dúvidas, o Governo não aprova os apoios sociais porque estes não foram uma proposta do Executivo ou do beato PS. A vontade de Poder é uma droga viciante, um vício indecoroso, e o Primeiro-Ministro dominador da cena política tem o completo monopólio do jogo democrático. O Primeiro-Ministro está contra os apoios sociais e tem a desfaçatez de se fazer de vítima. Os portugueses que são as verdadeiras vítimas deviam revoltar-se contra o cinismo e a insensibilidade social.
O Presidente da República é neste momento o guardião último da dignidade de todos os portugueses. Porque teve a imaginação, porque não recusou a criatividade, porque teve a coragem das suas convicções cívicas e das suas responsabilidades políticas. Pressionado de modo inaceitável pelo Governo, o Presidente não podia congelar os Diplomas sem colocar em causa a sua imparcialidade, a sua autoridade, a confiança que os portugueses depositam na sua figura e na sua Magistratura. A arrogância do Governo é a marca da desinteligência e da impunidade de um poder absoluto.
Quando toda a gente pensa no Presidente Constitucionalista, surge no horizonte do mandato o Presidente Político. Existe na educação política do Presidente uma componente que ultrapassa regimes e partidos, uma educação política em que o catolicismo social é o compasso moral da acção política. Esta a razão pela qual o Presidente da República observa o País Real em contraponto com a conformidade conformista do País Legal. No País Real estão os portugueses atingidos pela nova economia da pandemia, no País Legal está o conforto da rotina em tempos normais. Um político de bem não deixa portugueses para trás. Um político ambicioso e voraz de uma maioria absoluta sacrifica tudo em nome do poder. Com políticos deste calibre, os portugueses perdem a confiança num País que os continua a burlar.
Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.
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