Populismo, Tancos e a verdade
A verdade acerca dos assuntos coletivos é o primeiro tributo que os titulares do poder político têm o dever de prestar aos cidadãos.
De Tancos sabemos muito pouco e, provavelmente, nunca saberemos o que realmente se passou. A não ser que houve, pelo menos, uma encenação. Como em tantos episódios da política nacional, ontem como hoje.
A encenação, a falta de verdade e de transparência na ação política, são problemas muito sérios das democracias atuais.
Em Portugal, assistimos a estes episódios com um misto de ironia e de certeza interior de que não nos contam a verdade toda.
Como disse José Régio, olhamos para eles com olhos lassos e há nos nossos olhos ironias e cansaços. E cruzamos os braços, pelo menos por enquanto.
Parece persistir entre a nossa elite política uma velha tradição de não se contar toda a verdade à população, que não estaria preparada para a receber.
Muitas vezes acrescentamos que isso se faz a bem do País. E concordamos que quem diz toda a verdade não ganha eleições, aceitando, implicitamente, desse modo, que as eleições se ganham com a mentira e o sofisma. Com encenações.
A essa cultura de algumas elites respondemos com a nossa ancestral desconfiança acerca da lealdade da classe política e uma perceção da sua falta de transparência. Encolhemos os ombros e recolhemo-nos na abstenção e no alheamento de que estamos a ser preservados da verdade. Parece que aceitamos que existem verdades que não são suscetíveis de serem conhecidas por todos.
A falta de verdade e de transparência nos assuntos da governação é um tique autoritário e pouco democrático, que revela um desprezo pela cidadania e que não pode conduzir a bons resultados.
No passado, uma população maioritariamente analfabeta aceitava como natural uma elite que reconhecia como mais culta e informada, mas atualmente isso não acontece. A qualificação da população e uma certa desqualificação da classe política tornaram os eleitores mais exigentes e as encenações menos aceitáveis.
Por outro lado, a expansão dos níveis de fiscalidade tornou os cidadãos conscientes de que o seu futuro depende tanto das finanças públicas como das suas finanças privadas. E isso é assim porque os Estados exigem aos cidadãos uma fatia cada vez maior do produto do seu trabalho e do seu mérito que, em muitos casos é superior à parte que resta para si próprios e para as suas famílias.
O custo das democracias atuais para cada um dos cidadãos é demasiado elevado para que eles se deixem iludir com encenações sobre os assuntos da governação. Porque eles sabem que é o seu futuro que está em causa, e esse futuro depende, cada vez mais, da qualidade da governação pública do que da sua governação individual ou familiar. Essa perceção aumenta o seu nível de exigência sobre os agentes políticos.
Como essa exigência não está a ser correspondida, e porque, pelo contrário, se repetem os episódios que a contrariam, a indiferença está a dar lugar, progressivamente, à revolta.
Essa revolta é o gérmen do populismo, que facilmente converte a abstenção em voto de protesto contra uma opacidade caduca.
A democracia é uma conquista civilizacional da filosofia ocidental, erigida sobre o primado da cidadania e numa relação com o poder político assente na verdade e na transparência. Na tradição kantiana, a procura do bem através da conduta social, corresponde à procura da verdade na teoria do conhecimento. A verdade é o cimento da democracia, e a sua preservação a base da separação de poderes de Montesquieu, sendo a falta dela a causa do afastamento dos cidadãos da política e o germe do autoritarismo, para Alexis de Tocqueville.
Como disse Habermas, a legitimidade de ação democrática depende da participação discursiva dos cidadãos, que assenta na verdade e no consenso.
A verdade acerca dos assuntos coletivos é o primeiro tributo que os titulares do poder político têm o dever de prestar aos cidadãos. Essa é a outra face da moeda dos deveres tributários dos cidadãos para com o Estado, em que assenta o contrato social. Como dizia Hannah Arendt, acerca da verdade, “metaforicamente, ela é o solo sobre o qual nos colocamos de pé e o céu que se estende acima de nós”.
A falta de verdade acerca dos negócios da governação é uma falha grave das democracias atuais, porque pressupõe uma cidadania menorizada. Ora, não há democracia sem verdade. E a democratização da verdade está ainda por fazer.
A democracia só tem sucesso se assentar numa opinião pública forte, esclarecida, exigente e participativa. A falta de verdade e de transparência dos poderes públicos são a negação da própria liberdade de expressão, que impede a participação e o escrutínio.
Não é sustentável que os poderes públicos exijam aos cidadãos verdade, transparência e um comportamento exemplar em todos os domínios, se lhes omitem a verdade e não são transparentes.
A verdade e a transparência da ação política são o mais eficiente antídoto contra o populismo.
Até agora, o nosso país tem estado a salvo das tentações do populismo declarado, mas isso pode dever-se, apenas, à circunstância de os movimentos sociais internacionais demorarem apenas mais um pouco de tempo a chegarem cá.
Muitas vezes, a verdade acerca dos assuntos da governação pode não ser a mais agradável, mas ela possui uma energia integradora e inclusiva que é essencial à coesão. É a sua omissão que é uma ameaça e tem sempre duração curta. Ao contrário do que se possa pensar, a verdade é, sempre, o maior e o mais duradouro trunfo para o sucesso na política.
O Estado é dos cidadãos e é para eles que existe, sendo a eles que os poderes públicos devem prestar contas permanentemente, como na ação comunicativa e permanente de Habermas. Essa é uma garantia de sucesso dos que defendem uma sociedade aberta.
Voltando a Arendt: “Onde todos mentem acerca de tudo que é importante, aquele que conta a verdade começou a agir; quer o saiba ou não, ele se comprometeu também com os negócios políticos, pois, na improvável eventualidade de que sobreviva, terá dado um primeiro passo para a transformação do mundo”.
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