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O país político anda ocupado com a recuperação do tempo de serviço dos professores. Mas o país anda também às avessas com a greve dos médicos por melhores salários. O que é estranho é que ninguém se interrogue como professores e médicos surgem como grevistas nas ruas de Portugal. Na ética política republicana, na prática corporativa salazarista, professores e médicos são pilares do progresso e alicerces do regime. Em democracia, professores e médicos são proletários que enchem as ruas e as televisões com reivindicações saídas de um movimento sindicalista ao serviço da grande greve subversiva e revolucionária. Os membros do establishment revoltam-se contra o establishment.
Não. Não existe qualquer consideração classista, elitista nem uma implícita hierarquia social. A simples constatação deste facto é um fator democrático por excelência – professores e médicos perderam em estatuto social e perderam em estatuto financeiro. Esta posição social e económica está relacionada com dois símbolos da democracia e dois fétiches do progresso – a Escola Pública e o Serviço Nacional de Saúde (SNS). E ninguém é contra a universalidade da Escola Pública nem a universalidade do SNS. Só o cálculo dos custos foi descurado pelos arquitectos do Regime.
A ideia da Escola Pública transforma os professores numa espécie de “Engenheiros das Almas” empenhados na formação de bons cidadãos da República Democrática. Os professores transformam-se assim, não em símbolos do saber e figuras de respeito, mas em funcionários do Estado dependentes de uma hierarquia funcional e política do Ministério da Educação. Cumprem propósitos políticos, satisfazem necessidades geográficas absurdas, abdicam de uma autonomia intelectual, funcional, liberal, em função das listas de colocação nos horizontes da República. Com um regime centralizado e quase monopolista de recrutamento, o Estado trata os professores como elos de uma cadeia de montagem interminável e sempre renovada com novos candidatos sem opção. Marx explica.
A ideia do SNS transforma os médicos numa espécie de exército de “Anjos Brancos” empenhado em combater a doença e a morte para celebração da superioridade humanista da República. Os médicos transformam-se assim em operários da saúde, exercendo medicina em não-lugares denominados por Hospitais – as Urgências dos Hospitais são centros de processamento de pessoas, lugares de passagem, uma fronteira entre a saúde e a doença, entre a vida e morte. Mas o fervor humanista da República transforma estes lugares em desertos desumanos sem pausa ou compaixão, pois o que é essencial é a cadeia de produção que tem de tratar tantos doentes por hora, com tempos dedicados a cada doente estabelecido por tabelas de eficiência, com pulseiras de cor, tempos de espera exorbitantes, horas extraordinárias explosivas, regras de empenhamento cegas à realidade de uma multidão – a expansão infinita da procura e a redução administrativa da oferta de médicos. Adam Smith explica.
O que é comum à Escola Pública e ao SNS é uma mentalidade socialista que incorpora uma lógica capitalista no seu funcionamento estrutural e sociológico – o Estado reivindica o monopólio das funções sociais sem assegurar os recursos materiais e financeiros para o bom funcionamento das instituições centrais ao progresso democrático. E em função da falta de recursos, o Estado comporta-se como um capitalista numa lógica de exploração máxima do facor trabalho e na optimização mínima do fator remuneração. Aliás, o marcador social por excelência da degradação do estatuto de professores e de médicos está espelhado neste mecanismo económico que é afinal um dispositivo político.
A questão óbvia que ninguém quer colocar é a viabilidade de dois pilares centrais a uma ideia de progresso – será que a economia portuguesa produz o nível de riqueza necessário para manter simultaneamente a Escola Pública e o SNS? E a questão não é sequer ideológica, nem de esquerda nem de direita, nem liberal nem socialista, mas tão-somente o reconhecimento da permanente tensão entre propósitos constitucionais, prioridades políticas e recursos económicos. Perante a impotência do Estado observa-se a decadência dos serviços, a degradação dos profissionais, o aumento da emigração, a fuga de cérebros, o triste espectáculo de uma democracia ignorante na sala de aula e doente na sala de espera.
A normalização democrática exige mais da classe política e das políticas públicas. A expansão infinita dos impostos não é a resposta adequada a uma situação de crise como aquela que se vive com médicos e professores. “Os professores a lutar também estão a ensinar” ou o equivalente “Os médicos a lutar também estão a curar” são denúncias de uma República incapaz de reconhecer mérito, valor, dignidade, à geração mais qualificada que Portugal alguma vez produziu. A lógica da negociação perpétua é uma forma expedita de adiar soluções com a máscara dos “detritos verbais”. A negação dos factos políticos representa a falsificação da realidade social. E quando a política falsifica a realidade é sempre a democracia que está em risco.
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