Que o euro não estrague a moeda boa
O melhor que podemos desejar ao euro é que, na sua terceira década, não degenere em factor de divisão política e, em especial, que não estrague a moeda boa da Europa: o mercado único.
A moeda única fez há dias 20 anos de idade. O sentimento não foi propriamente de celebração, mas também não foi de pesar. Não pôde ser de celebração, certamente no caso de Portugal, porque no período da sua existência a economia nacional distanciou-se das outras economias que connosco partilham a moeda única. Mas também não foi de pesar porque, apesar de tudo, o euro encontrou a aceitação da generalidade da opinião pública na Europa, incluindo nos países com desempenhos económicos mais fracos, como as sondagens bem revelam. É, aliás, paradoxal que o euro, constituindo tecnicamente um instrumento de integração económica, seja hoje encarado como fim político e apreciado precisamente nessa dimensão. É paradoxal porque o euro, do ponto de vista económico, não serviu a largas franjas da população.
Eu sou de 1978. Pertenço àquela geração, porventura a última, que conviveu conscientemente com o escudo antes da chegada do euro. A geração dez anos mais nova do que a minha já só conheceu o euro. Da minha adolescência, vivida no Porto na década de 90, recordo-me que com 1.000 escudos no bolso dava para jantar fora (na lendária casa “O Maior”!) e para prolongar a noite. Com 2.000 escudos mais folga havia. E com 5.000 escudos (cinco contos!!) a sensação era absolutamente milionária. Hoje, 1.000 escudos (5 euros) mal chegariam para o prato do dia e 5.000 escudos (25 euros) também não chegariam muito longe. Ao mesmo tempo, naquela mesma época, também me lembro de um par de jeans Levi’s custar dezoito contos (90 euros), um preço proibitivo à época, mas que corresponde aproximadamente ao preço de hoje.
Os exemplos anteriores, embora redutores, mostram como era a vida em Portugal antes do euro. Os bens e serviços que eram importados custavam caro ou muito caro. Os de conteúdo ou de produção nacional apresentavam preços razoáveis para as carteiras locais. Quais foram então os principais méritos do euro? O grande mérito foi o abaixamento das taxas de juro, que antecedeu a adesão ao euro, e que alargou o acesso a capital estrangeiro. Foi uma grande oportunidade para Portugal. O outro mérito esteve relacionado com a abertura comercial ao exterior. Foi o acesso a bens e serviços importados que, sendo proibitivos com escudos, passaram a ser acessíveis com euros. E foi, sobretudo, o acesso das empresas portuguesas ao mercado único europeu.
Mas, como dizia Milton Friedman, na economia não há almoços grátis. Por isso, a adopção do euro em Portugal, uma economia menos produtiva do que aquelas que connosco iriam partilhar a moeda única, representou naqueles anos iniciais uma perda súbita de competitividade externa.
As condições de partida não auguravam grande chance a Portugal. A economia estava ainda muito atrasada face às economias mais fortes, às quais a moeda única estava ancorada. Porém, não foram só as condições de partida que nos penalizaram. Foi, acima de tudo, a nossa incapacidade de beneficiarmos das vantagens do euro, e da pertença à primeira divisão da Europa, que em muitos domínios conduziu às oportunidades perdidas. Não é que não tenhamos evoluído nestes vinte anos. Uma parte da nossa economia evoluiu e de que maneira – basta olhar para o peso das exportações no PIB português. Mas, globalmente, os outros países evoluíram muito mais.
Em 1999, segundo dados da AMECO, o PIB per capita ajustado pela paridade do poder de compra em Portugal representava 74% da média da zona euro. Hoje, o mesmo rácio está em 73%. Entre os doze membros iniciais do euro (incluindo a Grécia que só aderiu em 2001), nestes vinte anos de moeda única, para além de Portugal, o retrocesso económico face aos demais ocorreu também em Itália e na Grécia.
Nos restantes países, designadamente em Espanha e sobretudo na Irlanda, frequentemente incluídos na comparação entre países periféricos, os últimos vinte anos foram de evolução económica. No caso da Irlanda, a evolução foi mesmo extraordinária. Ou seja, as condições de partida não nos eram favoráveis, como também não eram para outros países, mas enquanto a maioria aproveitou a oportunidade, e alguns fizeram-no de modo espectacular, nós não o soubemos fazer. É na evidência anterior que resta a minha ambivalência face à moeda única. Por um lado, o apoio da opinião pública ao euro é indiscutível – incluindo nos países onde ele não produziu o sucesso ambicionado – e a verdade é que ele não prejudicou o andamento económico da maioria dos seus membros. Mas, por outro lado, se as condições de partida já não eram favoráveis para Portugal em 1999, as condições de evolução em 2019 não são infelizmente melhores.
A ideia de uma Europa aberta e em paz é frequentemente atribuída ao euro, todavia, o verdadeiro esteio dessa abertura e dessa prosperidade é o mercado único. No sistema europeu, a boa moeda é o mercado único, não a moeda única. Ainda assim, admitindo que o primeiro não sobreviveria ao ocaso da segunda, deve-se pensar na reformulação da moeda única. Num artigo publicado há dias na revista The Economist (“The euro enters its third decade in need of reform”, acesso pago), o ensaísta argumenta pela necessidade de concluir a união bancária e de encontrar um novo mecanismo orçamental de amparo em momentos de crise. As ideias, apesar de bem explicitadas, não são novas.
A união bancária tem vindo a ser discutida desde 2012 e para já pouco se avançou. Os sistemas bancários nacionais continuam balcanizados e a actividade transfronteiriça na banca continua aquém do desejável. A regulação financeira também não ajuda porque, ao fomentar a aplicação de recursos bancários em dívida pública (que, em sede de activos ponderados pelo risco, são ponderados a zero), os bancos da periferia, encontrando-se mais necessitados de obter rendimentos, são incentivados a carregarem-se de dívida pública de maior risco, perpetuando o seu perfil creditício, o contágio entre soberanos e bancos, e vice-versa.
Quanto à ideia do novo mecanismo orçamental, as propostas de Macron, com vista a um orçamento europeu reforçado, para além do que já existe, têm encontrado pouco acolhimento junto dos países do Norte. Na verdade, as divisões políticas começam a acentuar-se e a probabilidade de que as regras orçamentais sejam expandidas em prol da periferia parecem reduzidas.
Sobre o sentido de comunidade na União Europeia, em particular na zona euro, é importante notar que, depois de uma primeira década em que os países do centro e norte da Europa beneficiaram da expansão económica, a última década tem sido uma década de retrocesso para muitos deles face ao conjunto do euro. É o caso da Finlândia, da França, da Holanda e até o caso do Luxemburgo. Nestes países, o PIB per capita ajustado pela paridade do poder de compra, em percentagem da média da zona euro, é hoje inferior ao que era em 2009.
Assim, para se ultrapassarem os problemas de arquitectura institucional da zona euro será necessário alterar algumas regras. Mas, sobretudo, será crítica a mudança de filosofia subjacente ao projecto europeu. Na União Europeia de hoje, e mais ainda na zona euro, há demasiada preocupação com a coordenação e a centralização das políticas europeias, quando na realidade se deveria pensar mais na cooperação e na descentralização. Quanto ao euro, trata-se de um meio e não de um fim. O seu propósito é o de facilitar o crescimento económico nos países que a ele aderiram. Por isso, o melhor que lhe podemos desejar é que, na sua terceira década, não degenere em factor de divisão política e, em especial, que não estrague a moeda boa da Europa: o mercado único e as suas quatro liberdades fundamentais.
Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.
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