Quem cabritos vende e cabras não tem…
Estamos a regressar ao padrão comum na nossa história orçamental das últimas décadas: as despesas são sempre certas mas as receitas e poupanças são incertas.
Temos já uma execução orçamental anual completa, abundantemente detalhada, e os dados provisórios e parcelares do primeiro semestre deste ano. E então, afinal como é que funciona a “alternativa à austeridade e aos cortes no Estado”?
Primeiro vamos ver como é que ela não funciona, ou seja, onde é que a alternativa não é, afinal, alternativa: bater o pé em Bruxelas e tentar negociar metas orçamentais mais elevadas, relaxadas e menos exigentes. Ainda bem que o Governo, nesta matéria, se ficou pelo popular “agarrem-me, senão eu mato-o”. Para termos uma ideia, o PS defendia antes das eleições um défice de 3,0% em 2016 e de 2,5% este ano. O do ano passado ficou, afinal, em 2,0% e para este ano prevê-se 1,6%. Cerca de um ponto percentual abaixo daquilo que os socialistas consideravam ser a “viragem de página” mostra que afinal, nesta matéria, não se virou página nenhuma. Isto fica mais evidente quando sabemos que no ano passado o governo foi largamente “além da troika”, que aceitava um défice de 2,5%.
Isto, só por si, é bom para o país e para a economia. Menos défice significa menos acréscimo da dívida pública e a confiança dos credores aumentou quando perceberam que a via “syrizista” fora inconsequente. As taxas de juro cobradas ao Estado começaram a descer consistentemente a partir daí. Isto de começar a ser orçamentalmente responsável e ter melhores contas não é, afinal, mau de todo.
Depois temos o caminho e as opções que estão a ser tomadas para se chegar àquelas metas.
Uma parte relevante da redução do défice é totalmente benigna. É a que resulta do impacto da aceleração do crescimento económico e consequente redução do desemprego nas contas públicas. A análise feita pela UTAO (Unidade Técnica de Apoio Orçamental) à execução do primeiro semestre mostra isso de forma clara. São mais receitas da Segurança Social (cujo orçamento autónomo é consolidado nas contas de todas as Administrações Públicas) e menos despesas com subsídios de desemprego, por exemplo.
Graças, em grande parte, à evolução das exportações — e, nestas, do turismo — o fardo orçamental fica menos pesado quando a base fiscal conjuntural se alarga.
Em relação às grandes opções tomadas pelo Governo, que dependem sobretudo de decisões políticas, sabemos já como foi feito em 2016. A devolução mais rápida de salários da função pública, de alívio fiscal dos rendimentos do trabalho e do “bónus” dado aos restaurantes com a descida do IVA, foram compensados em parte pelo aumento de impostos indirectos e sobre o património. O resto, decidido ao longo do ano em função da execução, foram os cortes drásticos no investimento e na despesa prevista, com a retenção de quase 1.000 milhões de cativações que se tornaram definitivas.
Foram medidas de emergência, para garantir um bom resultado do défice apenas no primeiro ano?
Provavelmente não, porque há indícios de que este ano a fórmula está a ser semelhante. A mesma análise da UTAO diz-nos que as receitas fiscais, já alisadas de efeitos que têm a ver com pagamentos de reembolsos, está a crescer a cerca de metade da taxa prevista para todo o ano.
E como é que isto está a ser compensado ao ponto de continuarmos a ter um défice em queda? Sabemos que a evolução da economia está a dar a tal boa ajuda, benigna. Também sabemos que a promessa de retomar o investimento público continua, até ver, adiada. A execução do investimento do Estado está ainda mais baixa do que no período homologo do ano passado, apesar das autarquias estarem a gastar mais — ano eleitoral, pois claro.
E sobre a transformação das cativações em cortes efectivos de despesa face ao orçamentado só saberemos no final do ano, mas a dinâmica do primeiro semestre da receita fiscal, a manter-se, deverá obrigar a uma prática semelhante à do ano passado.
Isto mostra-nos que não há milagres e que as alternativas são muito menos efectivas do que o discurso político quer fazer crer.
Não há milagres porque, como diz a expressão popular, “quem cabritos vende e cabras não tem de algum lado lhe vem”. Quem aumenta algumas despesas, prescinde de algumas receitas fiscais e baixa o défice orçamental, nalgum lado tem que cortar outras despesas e aumentar outros impostos.
Já as alternativas aos “cortes no Estado” não se verificaram, como os dados mostram. Corta-se em investimento e em consumos correntes para aumentar salários. E agora vão retomar-se as progressões nas carreiras da função pública. Uma medida essencial para uma correcta gestão das pessoas que trabalham no Estado mas que, desligada de um sistema digno de avaliação de mérito, se transforma apenas num aumento salarial.
Sobre os cortes de despesa e de investimento face ao orçamentado não tenho particulares estados de alma. Podem até ser cortes benignos se o que ficou por gastar era supérfluo e não afectou a qualidade da prestação de serviços, sobretudo em áreas essenciais. E em relação ao investimento, do mesmo modo, se ficaram por lançar projectos dispensáveis e que viriam a tornar-se em encargos de despesa futura sem um retorno social ou económico, então o melhor foi mesmo terem ficado na gaveta. Só conhecendo com detalhe onde se fizeram os cortes se poderá fazer essa avaliação — e, claro, nunca o saberemos de forma transparente e com informação suficiente para fazer juízos objectivos.
Isto só pode incomodar os que acham que toda a despesa do Estado é boa e todos os cortes são maus por natureza.
Mas há aqui um padrão: os cortes de despesa estão a ser casuísticos e ad-hoc, geridos mês a mês, com a tal racionalidade incerta. Já o aumento da despesa, está a ser feito em rubricas permanentes, deixando sempre lastro de um ano para o outro e estabelecendo novos patamares mínimos rígidos que dificilmente poderão baixar no futuro — como se viu quando foi preciso cortar fortemente na sequência do resgate.
Ou seja, o aumento da despesa é estrutural, fica “fechado” nas leis e constitui, em muitos casos, os chamados direitos adquiridos. Já os cortes que estão a ser feitos na despesa para compensar esses aumentos, são pontuais, discricionários e não garantidos para o futuro.
O aumento da despesa que está a ser feito está garantido para os próximos anos. Os cortes não estão garantidos.
E este é um padrão comum na nossa história orçamental das últimas décadas: despesas certas, receitas e poupanças incertas.
Esperemos que os turistas continuem a chegar em bom número e as empresas aumentem as suas exportações para nos ajudar a pagar isto. Vamos acarinhar uns e outros, que bem precisamos deles.
O autor escreve segundo o antigo acordo ortográfico.
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