Reestruturação ou gestão arriscada da dívida?
O plano de reestruturação de dívida é, afinal, outra coisa, é um plano de mudança de modelo e política de gestão da dívida pública. O problema é que é arriscado no momento em que se exige prudência.
O relatório do grupo de trabalho sobre a reestruturação da dívida pública, assinado pelo PS e BE, ‘patrocinado’ pelo governo e classificado de “interessante” pelo Presidente da República, é uma mudança histórica de posição daqueles que, durante anos, defendiam um ‘haircut’ puro e duro dos empréstimos contraídos pela República junto dos nossos credores. O que mudou? Estavam na oposição, agora são governo e querem continuar a ser. É uma evolução positiva, revela maturidade – ou gosto pelo poder, conforme a perspetiva -, porque os promotores do grupo de trabalho abandonaram as teses revolucionárias do manifesto dos 74 e fazem propostas (mais ou menos) dentro do quadro em que o país está, na zona euro. São medidas de política interna e de negociação com as autoridades europeias. Deixemos as segundas – de difícil execução – e concentremo-nos nas primeiras: Passamos da reestruturação para a gestão arriscada da dívida pública?
O que o grupo de trabalho propõe não é uma reestruturação da dívida pública. Desde logo porque os que desenharam estas propostas sabem, na medida certa, a estrutura da dívida pública portuguesa. Recorro à análise de Joaquim Miranda Sarmento, aqui no ECO, sobre esta proposta: “A nossa dívida pública de médio e longo prazo ronda os 240 mil M€ (240 bis). Destes (…), os nacionais têm neste momento 112 bis, o que perfaz quase 50% da dívida pública (…). A restante dívida está nas mãos do BCE (15 bis, via QE e sobretudo via SMP), no FMI (15 bis), nos instrumentos Europeus (50 bis) e nas mãos de investidores estrangeiros (60 bis)“. É isto.
Afinal, que medidas propõem apenas dependentes da decisão política do governo, o que faz deste relatório, aliás, nada académico e muito político?
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Banco de Portugal deve reduzir provisões e pagar mais dividendos
Os economistas do PS e do BE sugerem, citando exemplos internacionais, que o Banco de Portugal não necessita constituir provisões tão avultadas quando compra dívida pública (que tem gerado lucros) já que isso reduz os dividendos pagos pelo Banco central ao Estado português. A medida já consta do Orçamento do Estado para 2017, está refletida no aumento dos dividendos que Carlos Costa pagará a António Costa, mas o grupo de trabalho sugere que se vá mais longe através da alteração da lei orgânica do Banco de Portugal para que a constituição de provisões não possa ser decidida livremente pela administração do banco central.
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Reduzir a maturidade da dívida
O grupo de trabalho sugere ao IGCP, a agência que gere a dívida pública, que opte por fazer emissões de mais curto prazo com taxas de juro mais baixas. Para os economistas do PS e BE o IGCP é demasiado prudente ao tentar fazer emissões de dívida a prazos mais longos para evitar ter de ir ao mercado tantas vezes. A ideia é baixar a atual maturidade da dívida de 6,6 anos para 4,9 anos, uma opção que permitiria gerar uma poupança de 387 milhões de euros em 2018 e um montante superior a 1200 milhões em 2023.
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Reduzir a almofada financeira do Estado
Em mais uma recomendação para o instituto dirigido por Cristina Casalinho, o grupo de trabalho aponta o dedo à dimensão da almofada financeira, ou seja, o dinheiro que está posto de lado para fazer face aos compromissos do Estado. Este excedente de tesouraria é em parte constituído por emissão de dívida, que se traduz no pagamento de juros, por isso os economistas sugerem uma redução da sua dimensão. Por outro lado, a almofada é constituída também com excedentes de organismos do Estado (empresas públicas e autarquias) e aqui o documento sugere que o IGCP ofereça taxas mais elevadas às instituições públicas que não estão sujeitas à unidade de tesouraria do Estado mas garantindo que são inferiores ao custo médio do financiamento da República.
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Pagar antecipadamente ao FMI
Esta tem sido a estratégia, mas os peritos sugerem que se acelere ainda mais os pagamentos antecipados do empréstimo do Fundo Monetário Internacional. O objetivo é o mesmo poupar nos juros, isto porque as taxas cobradas neste empréstimo contraído no âmbito do programa de ajuda financeira tem taxas de juro mais elevadas do que aquelas que são cobradas atualmente pelos mercados. Em causa está o pagamento antecipado de mais 7920 milhões de euros. Mas o documento frisa que só vale a pena amortizar toda a dívida que fique acima do valor que corresponde a 187,5% da quota de Portugal (5000 milhões de euros), porque só acima desta fasquia é que as taxas do FMI são mais elevadas. Mas há mais um senão: FMI e parceiros europeus têm de dar luz verde a esta amortização antecipada.
O que têm em comum estas medidas? Uma estratégia de risco, a pensar no curto prazo, já em 2018, para o Estado poupar cerca de 410 milhões de euros. De um total de dívida de 240 mil milhões. No que depende da vontade do governo, o atual ou outro, este não é um plano de reestruturação de dívida, mas um plano de mudança de estratégia na gestão da dívida pública. Se já percebemos que não há aqui nenhuma reestruturação, e ainda bem que não, também percebemos que o conservadorismo na gestão da dívida pública seguido pelo IGCP, por João Moreira Rato e por Cristina Casalinho, em condições diferentes, será posto em causa. Vale o risco? Não. Pelo contrário, é imprudente.
As incertezas internas e externas continuam a ser enormes. Portugal tem uma dívida que vale 130% do PIB, as agências de notação financeira estão ainda longe de estarem convencidas dos méritos da estratégia económica e financeira do país, e por isso a classificação da República continua abaixo de ‘investment grade’. É mesmo agora que queremos andar na corda bamba sem uma rede por baixo? Ou devemos ter prazos longos e de amortização tão baixa quanto possível?
Das medidas elencadas acima, há duas particularmente relevantes, e perigosas. O IGCP deve fazer emissões de dívida mais curtas e, em simultâneo, a almofada financeira deve reduzir-se. São duas medidas que vão no mesmo sentido, de risco. Pior, assumem como facto que os investidores estarão sempre disponíveis para renovar, nesses prazos mais curtos, o investimento em dívida pública portuguesa. Estarão, ou não, porque é uma decisão que avaliarão a cada momento, como se tem visto. Ora, o que comportam, na verdade, é uma exposição do país a convulsões do mercado.
O governo apadrinhou a apresentação deste relatório, o secretário de Estado do Orçamento João Leão sentou-se à mesa com os promotores do grupo de trabalho e isso, queiram ou não, compromete o país. João Leão bem se esforçou, com um manifesto nervosismo, por garantir que estas propostas não são a política do governo, mas o que todos ouvem é outra coisa: O governo está a pensar em medidas de curto prazo para ganhar folga orçamental já no orçamento do próximo ano. Já alguém perguntou a Cristina Casalinho o que pensa desta estratégia?
Nota: O Bloco de Esquerda passou a ser um partido de poder, e é uma ironia que tenha sido precisamente um relatório sobre a reestruturação da dívida pública a confirmar o que já era evidente, apesar da retórica política. As propostas que assinou têm implícita a preocupação de cumprir as regras europeias. Bem diferente do PCP, que se afastou deste grupo de trabalho e classificou as respetivas medidas de “microsoluções”. Bem-vinda, Catarina Martins. Mas, agora, o desafio político do Bloco de Esquerda mudou. Os comunistas, esses, fazem jus à sua história, e continuam exatamente no mesmo sítio.
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