Sabe mesmo no que vai votar?
Está na altura da Comissão Nacional de Eleições ser mais que um mero fiscalizador de publicações “facebookianas” em dia de reflexão. A Democracia agradece.
Consta que foi Eubulides de Mileto, um filósofo grego que viveu no século IV a.C., quem um dia se preocupou em saber “quantos grãos de areia são precisos para que tenhamos um monte de areia?”. Um grão de areia não é um monte de areia. E se tivermos uma qualquer quantidade de grãos de areia que não constitua um monte, juntar-lhe mais um grão não a transformará num monte de areia, certo? Mas, então, não seria possível termos montes de areia, porque cada grão que adicionamos é tão transformador quanto o anterior. E, no entanto, os montes de areia existem. Estava, assim, formulado o Paradoxo sorites.
Num país onde existem 9.342.202 eleitores recenseados, cada voto é um grão de areia. Parece não fazer a diferença. Mas a beleza da Democracia é que os votos são todos iguais: o da mulher ao do homem, o do jovem ao do velho, o do pobre ao do rico, todos valem o mesmo. E, por isso, se o seu voto não eleger ninguém, nenhum voto elege e ninguém é eleito. Mas sabemos que vamos ter 230 deputados no Parlamento.
Há uns dias, num artigo de opinião a que este pediu o título emprestado (“Sabe mesmo em quem vai votar?”), Luís Aguiar-Conraria narrava na primeira pessoa a experiência de tentar descobrir quem são os candidatos a ser um dos 230. Foi um episódio engraçado, que envolveu um telefonema para a Comissão Nacional de Eleições (CNE), a perguntar onde se podiam encontrar as listas de candidatos à Assembleia da República. Ficámos a saber que no site da CNE não é.
O ano passado, a Lei Orgânica n.º 3/2018 veio alterar o artigo da Lei Eleitoral para a Assembleia da República respeitante à publicação das listas. Não é que a versão anterior atribuísse explicitamente essa competência à Comissão, mas, na nova redacção, foi incluído um número 2 onde se estabelece que «a administração eleitoral da Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna procede à divulgação na Internet das candidaturas admitidas», pelo que a CNE entendeu que não era tarefa sua.
Ora, a lei que a criou deu-lhe como primeira missão «Promover o esclarecimento objectivo dos cidadãos acerca dos actos eleitorais, designadamente através dos meios de comunicação social». Mas, aparentemente, elucidar objectivamente os cidadãos sobre as eleições não inclui dizer-lhes quem são as pessoas em quem podem votar.
Muito menos contempla programas eleitorais. Aliás, a apresentação de uma candidatura à Assembleia da República consiste na entrega de uma lista de nomes de gente que tem de declarar não estar abrangida por qualquer inelegibilidade, não se estar a candidatar em mais listas, aceitar a candidatura pelo partido ou coligação proponente da lista e concordar com o mandatário escolhido. E cada lista tem de se acompanhar da certidão comprovativa do registo do partido político, claro.
É certo que a constituição de um partido político obriga a um projecto de estatutos e a uma declaração de princípios ou um programa político, mas isso não se confunde com propostas concretas para eleições específicas. E estas não são exigidas por lei.
Por isso, não admira que a página da CNE não contenha os programas eleitorais. Que também não estão no Portal do Eleitor, onde se anuncia estar “tudo o que precisa de saber para votar”. Pelos vistos, é oficial que uma pessoa não precisa de saber em quem vai votar, nem no quê. Importante mesmo é saber onde pode fazê-lo, em que dias e como. Informações que permitam uma escolha consciente e informada não são assim tão necessárias. Quem estiver mesmo, mesmo com muita vontade de ser esclarecido pode sempre tentar os motores de busca e ver se tem sorte.
Pois eu tenho um entendimento diferente. Parece-me que não há maior clarificação sobre eleições que a das ideias que se apresentam a votação. Aparentemente, Francisco Campaniço e Pedro Leal concordam comigo. São dois jovens estudantes – o primeiro, do Instituto Superior Técnico, o segundo, da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa – que decidiram criar o Legislativas 2019, onde se encontram os programas dos vários partidos que concorrem nas eleições do próximo Domingo, organizados por grandes temas.
À semelhança do DRE Tretas, dos programadores Helder Guerreiro e José Lopes, que promoveu a melhoria do Diário da República Digital, ou do Hemiciclo.pt, criado pelo economista (então, estudante de Economia) David Crisóstomo e pelo designer industrial Luís Vargas e que talvez tenha inspirado a renovação do site do Parlamento, espero que também o Legislativas 2019 possa sugerir uma transformação da página da Comissão Nacional de Eleições, transformando-a num repositório dos vários programas apresentados pelos diversos partidos nas diferentes eleições. Uma base de dados que permita ao cidadão fazer pesquisa segundo vários critérios, dando-lhe a possibilidade de comparar propostas numa certa área ou ver a evolução dos programas de um mesmo partido ao longo do tempo, para citar apenas dois exemplos.
Está na altura da Comissão Nacional de Eleições ser mais que um mero fiscalizador de publicações “facebookianas” em dia de reflexão. A Democracia agradece.
P.S. – Na descrição do seu périplo em busca das listas de candidatos não publicadas, Luís Aguiar-Conraria conta que, a seguir ao telefonema para a Comissão Nacional de Eleições, seguiu-se um para a Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna. De lá, explicaram que a lei obriga a publicar as candidaturas admitidas, ou seja, quais os partidos aceites em cada círculo eleitoral, mas não determina a divulgação dos candidatos. Uma distinção que Luís Aguiar-Conraria teve dificuldade em compreender.
Eu partilho da sua confusão. Sobretudo quando o artigo 38.º da Lei Eleitoral para a Assembleia da República dispõe que «Em caso de substituição de candidatos ou de anulação de decisão de rejeição de qualquer lista, procede-se a nova publicação das respectivas listas». Repare-se, o artigo 24.º dessa mesma lei diz o seguinte:
- «1 – A apresentação consiste na entrega da lista contendo os nomes e demais elementos de identificação dos candidatos e do mandatário da lista, bem como da declaração de candidatura, e ainda, no caso de lista apresentada por coligação, a indicação do partido que propõe cada um dos candidatos.
- 2 – Para efeito do disposto no n.º 1, entendem-se por elementos de identificação os seguintes: idade, filiação, profissão, naturalidade e residência, bem como número, arquivo de identificação e data do bilhete de identidade».
Ou seja, é claro a partir deste artigo que os candidatos são pessoas, não são partidos. Se, quando eles são substituídos, há que republicar as listas, é porque a lista originalmente publicada devia ser a das pessoas que estão a candidatar-se a um lugar na Assembleia da República. Se fosse só o partido, qual era a lógica?!
Apesar desta resposta, uns dias após a publicação de Luís Aguiar-Conraria, as listas foram publicadas. Encontram-se aqui: https://www.legislativas2019.mai.gov.pt/candidatos.html.
Nota: A autora escreve segundo a ortografia anterior ao acordo de 1990.
Disclaimer: As opiniões expressas neste artigo são pessoais e vinculam apenas e somente a sua autora.
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