Com as férias parece que o Sistema fica deserto de recursos e repleto de doentes. Parece que os portugueses adoram ficar doentes no Verão, o que é um argumento incompreensível e insultuoso.

Portugal é um satélite do SNS. O clima do país muda com os sucessos e as crises do Sistema de Saúde. Se o SNS funciona normalmente, o SNS é o certificado histórico do êxito da democracia. Se o SNS não cumpre a sua função ideal, o SNS está tomado pelos interesses corporativos. Para desmoralização nacional o SNS nunca funciona em momentos essenciais – falha no Natal, falha na Páscoa, falha no Verão. Com as férias parece que o Sistema fica deserto de recursos e repleto de doentes. Parece que os portugueses adoram ficar doentes no Verão, o que é um argumento incompreensível e insultuoso.

A filosofia do SNS baseia-se no preconceito ideológico de libertar os portugueses da doença. Como se a doença fosse uma opção de liberdade e não uma imposição das contingências, do tempo, da idade, da decorrência natural de sermos mortais. Mas não. O SNS para a política mais ideológica é uma espécie de Ministério da Imortalidade. Esta ideia transforma o Sistema num enorme labirinto kafkiano onde as responsabilidades se diluem em cateteres de soro espetados em veias esquecidas em salas de espera pelo país. O SNS está transformado numa enorme repartição pública, gerido com a insensibilidade burocrática das ditaduras, suportado por horas extraordinárias, assente em listas de espera. Listas de espera alimentadas pelo tempo da vida dos outros.

Quando Portugal antecipa o “Inverno Demográfico”, nascer em Portugal é uma aventura fantástica entre o romance e o esquecimento. Fecham Urgências, abrem Urgências, o Sistema cria uma matriz de risco que se alimenta com a vida dos outros e da necessidade dos que querem nascer. Há maior liberdade do que a liberdade de dar vida e de querer nascer? Neste momento maior o Sistema falha de forma indecorosa, indecente, incompreensível e pouco democrática. O SNS pretende libertar os portugueses da morte quando não é capaz de lhes garantir o direito à vida.

O SNS é prioritário para todos. O SNS não é prioritário para ninguém. O Sistema parece ter no centro um formulário electrónico onde se acumulam tensões explosivas que não se modernizam nem se democratizam. Médicos e enfermeiros são funcionários de um universo de quotas e de turnos onde o factor humano não é determinante. Os políticos exploram o Sistema apenas para ganhos oportunistas e para a afirmação dos compêndios ideológicos. Na democracia de Abril o teatro anatómico e a hipertensão retórica fazem do SNS uma espécie de religião laica e transformam o Ministério da Saúde na Catedral da Democracia. De uma religião esperam-se milagres. E milagres prometem os políticos com a perfeita consciência do desastre. A esperança é a última a morrer com excepção da esperança de todos aqueles que já morreram.

Na confusão das discussões técnicas, na infinita sobreposição de grelhas salariais, na permanente discussão com os sindicatos, o SNS é sobretudo um não-lugar. Sociologicamente um não-lugar é uma instalação de passagem, é um equipamento para processamento de pessoas que entram e que saem num tempo cientificamente estipulado e politicamente conveniente. O SNS é a versão de uma caixa negra, observa-se o fluxo de entrada e calcula-se o fluxo de saída. Exactamente como um aeroporto, uma estação de comboio, um campo de concentração. Se não existem funcionários para processar os pacientes, estes não entram e ficam em lista de espera. O Sistema vive uma fase talvez estrutural em que parece impossível criar fluxos de saída felizes, abandonado que está à descrença e à falta de confiança na capacidade de melhorar o mundo. O mundo da realidade é um lugar que o longo braço da política não consegue alcançar e por esse motivo a política refugia-se no formalismo da invenção burocrática.

No Portugal contemporâneo não existe um SNS universal e comum. As diligências da “Saúde Pública” estão divididas em três sistemas informais. Os três sistemas não são complementares. Os três sistemas estão ligados pela lógica do confronto e pela lógica da extracção de rendas. O país tem um Sistema de Saúde que se motiva pela promoção do lucro. O país tem um Sistema de Saúde que se orienta pelo cumprimento de um direito social. O país tem um Sistema de Saúde que segue as necessidades básicas da política. Em todos estes Sistemas há os conflitos que têm de haver e os sofrimentos que são inevitáveis. O que os portugueses perdem é uma aspiração essencial ligada à vida democrática em comum.

O SNS é uma fábrica. Os médicos são engenheiros dos corpos. Os enfermeiros são mecânicos especializados. As escalas de urgência são listas de processamento. Na fábrica só não passa quem não sente. Na fábrica os mais conscientes são os que vêm a passar e a sofrer do que previam e do que desconheciam. Nos corredores da fábrica parece que é a isto que se chama Vida.

* O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.

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Saúde & Sorte

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