Sporting: Só eu sei porque não pago ao banco
Se deve pouco dinheiro a um banco, o problema é seu. Se deve muito, o problema é do banco. É a terceira vez que Novo Banco e BCP fazem um perdão à dívida do Sporting. Faz sentido?
A discussão sobre os devedores à banca entrou novamente na agenda depois de Rui Rio ter dito que queria que a Caixa Geral Depósitos tornasse pública a lista dos seus 50 maiores devedores em incumprimento ou com dívidas reestruturadas. Isto para que o país percebesse por que razão teve de injetar 5 mil milhões de euros no banco público, dinheiro esse que para o líder do PSD poderia ser utilizado para outros fins, nomeadamente para aumentar salários na Função Pública.
A ideia de Rui Rio foi acolhida pelo PCP, CDS e Bloco que até querem mais. Querem que a divulgação da lista dos caloteiros da banca abranja não só a Caixa, mas todos os bancos que receberam ajudas públicas. Esta possibilidade de fazer tábua rasa do sigilo bancário tem uma vantagem e uma desvantagem.
A vantagem é que permitiria escrutinar as opções dos bancos e impedir que se dessem créditos por favor ou por cunha, ou simplesmente porque o banqueiro é adepto de um determinado clube. A desvantagem é que colocaria os bancos que tivessem de mostrar esses créditos em situação de desvantagem face aos concorrentes: nenhuma empresa quereria fazer negócios com um banco cujo historial de crédito possa ir para aos jornais.
Colocando a vantagem e a desvantagem na balança, a desvantagem pesa mais, ou seja, os bancos não devem revelar quem são os seus maus pagadores. Até porque existem, ou deveriam existir, mecanismos internos e externos nos bancos para controlar a forma como se dá crédito e a forma como são negociados.
Isto que dizer que não devemos questionar a forma como a banca dá crédito ou o renegoceia? Falso. Há casos, como os sucessivos perdões de dívida que o Novo Banco e o BCP deram à SAD do Sporting ou ao próprio clube que merecem ser escrutinados, questionados e estranhados, até porque podemos estar perante negócios moralmente questionáveis e que minam a confiança no setor financeiro.
O acordo de reestruturação
Comecemos por contar a história do início. O Sporting, como quase todos as SAD de futebol, era (é) um clube que estava falido: capitais próprios negativos, dívida astronómica à banca e violações constantes do artigo 35 do Código das Sociedades Comerciais.
Para ajudar a resolver o problema, ou pelo menos para adiá-lo, em 2011, ainda no tempo José Eduardo Bettencourt, o Sporting emitiu VMOC A (Valores Mobiliários Obrigatoriamente Convertíveis em ações) no valor de 55 milhões de euros, que são instrumentos em que a banca troca dívida por um instrumento financeiro que, se não for pago, dá ao banco o direito a ficar com capital da SAD.
Como as dificuldades financeiras da SAD continuaram, no dia a 14 de Novembro de 2014, a SAD e o Clube fizeram um Acordo de Reestruturarão Financeira com o BCP e Novo Banco e consistia, grosso modo, no seguinte:
- Renegociação dos financiamentos bancários, mediante a contratação de novas linhas de financiamento em condições mais vantajosas para o Grupo SCP;
- Reembolso dos saldos intergrupo, designadamente da dívida do SCP à Sporting SAD;
- Aumento de capital da Sporting SAD por conversão de dívida da SAD à Holdimo Participações e Investimentos;
- Novas entradas em dinheiro a efetuar por investidores externos;
- Emissão de novos valores mobiliários obrigatoriamente convertíveis (VMOC) em ações da Sporting SAD por conversão de dívida dos bancos.
No âmbito deste acordo (ponto 3), o angolano Álvaro Sobrinho passou a ser o maior acionista individual da SAD e, no âmbito do ponto 5), a SAD do Sporting voltou a emitir, em dezembro de 2014, os VMOC B no valor de 80 milhões: 56 milhões subscritos pelo BCP e 24 milhões pelo Novo Banco.
Os três perdões
Até aqui, não há nada de estranho. É uma relação entre uma SAD meio falida e dois bancos cheios de boa vontade em ajudar o clube e a quererem reaver o dinheiro que emprestaram. A estranheza começa quando, não se percebendo muito bem o porquê, BCP e Novo Banco começam a não cumprir o Acordo de Reestruturação e a perdoar dívida atrás de dívida.
1º perdão: O primeiro perdão aconteceu a 8 de janeiro de 2016, quando a banca e a SAD decidem prolongar a maturidade dos VMOC A em 10 anos, até 2026. A contrapartida foi a subida de 3,5% para 4% dos juros pagos. Neste perdão, o agravamento dos juros é claramente insuficiente para compensar tamanho alargamento de maturidade e, na negociação, foi introduzida uma cláusula de que os juros são pagos “caso a SAD do Sporting tenha lucros e distribua dividendos”. É uma espécie de, “se puderes, pagas. Se não puderes, a gente não leva a mal”.
A renegociação dava de tal forma nas vistas que, nessa altura, a Assembleia da República chegou mesmo a discutir uma petição contra esse prolongamento, e o aparente tratamento desigual com que os bancos brindam os clubes de futebol e as famílias.
2º perdão: O segundo “perdão” tem a ver com o Ponto 4) do Acordo de Reestruturação. Como o Sporting, pelos vistos, não conseguiu encontrar um novo investidor para injetar 18 milhões de euros através de um aumento de capital, então o Novo Banco resolveu adiantar esse dinheiro, cobrando um juro de 1%, sim, leu bem, 1%.
3º perdão: Foi na semana passada que ficámos a saber por um artigo que Bruno de Carvalho escreveu no DN, e pelo Correio da Manhã, que os dois VMOC (VMOC A = 55 milhões e VMOC B = 80 milhões) que totalizavam 135 milhões de euros, poderiam ser recomprados pelo Sporting por 40,5 milhões, ou seja, com um desconto de 70%. Em vez de 1 euro, os VMOC podem ser recomprados por 30 cêntimos cada.
Se Paulo Futre pensava que ir buscar charters de chineses era um negócio da China para o Sporting, enganou-se. Este negócio com o Novo Banco e com o BCP é que é o negócio da China.
Reflexões e conclusão
Estes negócios ou negociatas entre o Sporting e a banca levantam várias questões, de índole moral, financeira e clubística.
- Se um pobre coitado de um cliente falhar meia dúzia de pagamentos da prestação da casa, os bancos acionam de imediato a hipoteca e ficam sem casa. É caso para recordar aquela máxima: “Se deve pouco dinheiro a um banco, o problema é seu. Se deve muito, o problema já é do banco”.
- Se uma empresa não paga a tempo e horas, na melhor das hipóteses a sua dívida é reestruturada e a banca normalmente transforma dívida em capital. Por isso é que hoje os bancos são acionistas das mais variadas empresas, desde a comunicação social ao turismo. Quando não ficam com o capital, entregam-no aos fundos de recuperação como a ECS. Se é assim com as empresas, por que é que com o Sporting é diferente? Dois pesos, duas medidas.
- O Novo Banco e o BCP desculpam-se, informalmente, dizendo que já tinham colocado parte do dinheiro dos VMOC como imparidades, ou seja, já tinham dado o dinheiro como perdido. Então se já o tinham dado por perdido, não deveriam executar a hipoteca e transformar a dívida em capital?
- Há quem argumente que os bancos não querem forçar a conversão dos VMOC, já que a banca não tem vocação para ser acionista de um clube de futebol. Então, se assim é, por que razão aceitaram o capital de um clube de futebol como garantia de um instrumento financeiro?
- O Correio da Manhã afirma que no âmbito do 3º perdão, o Novo Banco e o BCP vão poder usar os 17,5 milhões de euros que o Sporting colocou à parte, numa conta penhor, para um dia pagar esses VMOC. Então os bancos dão-se por satisfeitos por receber como contrapartida poderem usar um dinheiro que já é seu?
- Sendo o Novo Banco um banco com 25% de capital público, e tendo recebido 4,9 mil milhões em 2014 e podendo receber mais 3,9 mil milhões de euros de capital contingente com dinheiro dos contribuintes, não deveria ter um maior cuidado na concessão / renegociação destes créditos? E não deveria dar uma explicação pública sobre este negócio?
- Quando a Comissão Europeia veio dizer que no Novo Banco continuava a ser “concedido crédito por favor”, tal como no tempo do antigo BES, será que estava a referir-se a negócios como este do Sporting?
- Conclusão: É imperdoável haver tantos perdões.
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