Vamos ter uma supervisão bancária fofinha até quando?
Com os dados que hoje conhecemos, a forma como decorreu a intervenção do BdP no BES mostra um regulador com medo do regulado e do poder que este tinha ou aparentava ter.
Os reguladores que não gostam de ser incómodos e temidos não servem para grande coisa. Não merecem o investimento que a sociedade tem com eles porque, no fim do dia, não cumprem devidamente a sua função.
Quarta-feira
Já se discutiu muito sobre os “off shores” e a saída de 10 mil milhões que não estava nas estatísticas referentes ao período entre 2011 e 2015. Já sabemos muita coisa mas ainda desconhecemos o essencial. Sabemos que os dados não foram divulgados, como deviam. E sobre essa falha já tivemos várias explicações diferentes dadas por Paulo Núncio, nenhuma particularmente convincente. Sabemos também, isto pela voz de Rocha Andrade, que não se tratou apenas de uma omissão estatística mas também de uma omissão fiscalizadora, porque alguns dados não entraram no sistema por problemas informáticos.
E este é o ponto importante: saber como, porquê e com responsabilidades de quem — por acção ou omissão — há operações que escapam ao escrutínio fiscal.
O facto de se tratar de transferências para “off shores” apimenta o assunto e dá largas a uma boa dose de demagogia e populismo. A utilização de paraísos fiscais é legal e por detrás de um depósito numa conta aí sediada não está necessariamente um traficante de armas ou o produto de uma operação de suborno — podemos discutir se eles deviam existir ou não, mas que existem e podem ser utilizados dentro da lei é um facto.
Mas, demagogias à parte que só servem para confundir assuntos que já são complexos, é um bom princípio que não haja zonas ocultas de inspecção fiscal. Da mesma forma que não deve haver transacções comerciais ou operações financeiras internas à margem do radar da Autoridade Tributária.
Que se apurem os factos direitinhos porque a vida não começa e acaba em discussões parlamentares feitas essencialmente para marcar pontos junto da opinião pública.
Sexta-feira
Não sei o que mais tem que acontecer no sistema financeiro e que revelações terão que ser feitas para que se conclua que a supervisão bancária do Banco de Portugal precisa de uma reforma profunda, daquelas que não deixa pedra sobre pedra.
A questão não é pessoal nem relacionada com este ou aquele governador. As evidências não são de hoje nem sequer se formaram durante a governação de Carlos Costa. Basta recuarmos a Vítor Constâncio e ao caso BPN para confirmar que a sonolência foi a mesma, as justificações iguais e a falta de responsabilização com que se sai disto tudo ameaça também mimetizar a triste prática passada. E estou em crer que se não aconteceu antes, com outros governadores e com esta clarividência, foi apenas porque a conjuntura era outra e sem desafios de monta para os bancos.
A cultura que está entranhada naqueles corredores da Rua do Comércio, na baixa lisboeta, pode ter servido para manter as coisas a funcionar em boa parte do século passado, quando a actividade bancária era de relativamente baixa complexidade, muito baseada nas relações e conhecimentos pessoais e na confiança que daí resultava. O contexto português, por razões diversas em diferentes períodos, também manteve o sector à margem da competição de mercado e da complexidade financeira.
Durante a ditadura, a economia era relativamente fechada e atrasada. Os grandes grupos económicos eram meia dúzia e eles próprios tinham os seus bancos. Tudo ficava, por isso, em família. O crédito a particulares era escasso ou inexistente.
Com o 25 de Abril e as nacionalizações, o sector e grande parte da economia passou todo para as mãos do Estado. Foi o tempo das decisões administrativas para tudo. Eram os governos que fixavam as taxas de juro de crédito e de depósitos ou os limites de empréstimos que cada banco podia conceder, a que sectores e em que condições. Os movimentos de capitais eram altamente controlados e até para trocar escudos por pesetas para ir a Badajoz comprar caramelos eram necessárias autorizações, justificações e a correspondente resma de papéis. Não havia Multibanco, os cartões de crédito eram um luxo apenas acessível aos que “viajavam para o estrangeiro”, o crédito à habitação era quase nulo e apenas autorizado ao Crédito Predial Português e Montepio Geral. E nem pensar em crédito para compra de carro ou para férias em Cancun.
Mesmo assim, o Estado foi varrendo muito lixo para debaixo do tapete. O Instituto de Participações do Estado era uma espécie de unidade de cuidados terminais para muitas empresas que, obviamente, não resistiam a ser geridas à distância a partir dos ministérios da tutela. E ao lado foi criada a Finangeste, sob a batuta do Banco de Portugal, para onde foi empurrado dos balanços dos bancos o malparado que resultou de uma economia controlada pelos governos numa espécie de planos quinquenais. Se procurarmos bem ainda deve haver por aí uns monos desse tempo algures numa qualquer sociedade instrumental sob a alçada do Banco de Portugal.
A abertura do sector à iniciativa privada, no final dos anos 80, e as privatizações que se seguiram colocaram pela primeira vez a banca em concorrência de facto e sujeita a regras de mercado. Os anos 90 passaram-se bem, com forte crescimento, a chegada da tecnologia e a multiplicação de produtos financeiros para todos, de débito e de crédito. A forte descida das taxas de juro que resultou do caminho para o euro levou muita gente a pedir empréstimos e a falta de um mercado de arrendamento transformou Portugal num país de proprietários da sua própria casa — ou de uma hipoteca, o que não é bem a mesma coisa. Até o Estado ajudava, com a bonificação de juros para o Crédito Jovem à Habitação — mas que na prática era para os pais e pago pelos pais -, que só viria a acabar no início deste século quando se começou a fazer contas e a perceber que o dinheiro já não dava para tudo.
Quando as coisas começaram a correr mal, numa economia que não crescia e que entretanto se tinha endividado para lá da razoabilidade, o mundo financeiro já era outro. Globalizado, altamente complexo, cheio de tecnologia, pejado de produtos incompreensíveis e, como se diz na gíria, demasiado alavancado.
O que pouco ou nada mudou durante todos este tempo foi a supervisão bancária, que se manteve no seu remanso burocrático. Aquilo sempre foi visto, a partir de dentro, como um clube de senhores importantes a tratar de coisas mais importantes ainda. Uma elite, a elite financeira, que não tinha que prestar contas a ninguém, que sempre recusou auto-avaliações, quanto mais escrutínios externos.
Reuniam e lá se entendiam, sem alaridos, sem posições de força, sem murros na mesa porque senhores da banca não dão murros na mesa. O Banco de Portugal não era o supervisor, era um banco diferente entre os outros, com quem se partilhavam quilómetros de listagens e números que mostravam que estava tudo bem. A permanente circulação de quadros e administradores entre regulados e esta espécie de regulador — que ainda hoje se mantém, como se vê pelo trânsito entre a PwC e o BdP, por exemplo — garantia que se estava sempre entre amigos.
O primeiro choque aconteceu quando um “outsider” vindo de Aveiro e que tinha sido secretário de Estado dos Assuntos Fiscais decidiu fazer um banco com alguns amigos da construção civil e outros que tinha conhecido na política, como Dias Loureiro. Oliveira e Costa usou e abusou das facilidades que tão bem conhecia e da mansidão da supervisão. A ganância colectiva desta gente fez o resto. O Banco de Portugal limitou-se a recolher os cacos, incrédulo. Como Vítor Constâncio e o seu responsável pela supervisão confessaram nas audições da Comissão Parlamentar de Inquérito ao caso, como era possível terem desconfiado de banqueiros, que no seu entender e por definição, eram sempre gente séria e de bem?
Depois veio o BPP, o BES, o Banif. E também a Caixa, que tem accionistas com bolsos fundos a quem ninguém pergunta se estão dispostos a capitalizar o banco: os contribuintes. Basta um decreto e os problemas da Caixa resolvem-se. E foram mudando também os administradores do BdP.
O certo é que nem a sucessão de desastres fez o Banco de Portugal tirar conclusões e atalhar caminho. A falta de escrutínio técnico mantém-se. As comissões parlamentares são úteis e permitem que se averigue a responsabilidade política e institucional. Mas as averiguações não podem esgotar-se aí. É preciso fazer auditorias sérias e alterar procedimentos, formas de actuar e regras.
O que se vai sabendo do caso BES — agora com dados novos, trazidos à luz pela investigação que a SIC tem emitido esta semana — confirma que o perfil e a cultura de supervisão pouco ou nada mudaram desde os bons velhos tempos em que as reuniões entre regulador e regulados pouco diferiam dos encontros da Associação Portuguesa de Bancos.
É uma supervisão medrosa, com receio de exercer o seu poder e a sua autoridade, que faz sugestões em vez de dar ordens, que se enreda em questões processuais e legais mesmo quando já sabe que do outro a lei está a ser violada e há crimes económicos e financeiros em curso.
Uma supervisão que pede por obséquio para exercer as mais básicas das suas funções, saindo com desculpas pelo incómodo.
A supervisão do BdP não consegue assimilar que algumas vezes tem que ser dura, falar alto, exigir, dar ordens. E depois fazê-las cumprir, sem demoras.
Com os dados que hoje conhecemos, a forma como decorreu a intervenção do BdP no BES mostra um regulador com medo do regulado e do poder que este tinha ou aparentava ter. E isto é o primeiro passo para o desastre, como se viu.
Os reguladores que não gostam de ser incómodos não servem para grande coisa. Não merecem o investimento que a sociedade tem com eles porque, no fim do dia, não cumprem devidamente a sua função.
Se não forem temidos pelos regulados, os reguladores estão a falhar nalguma coisa. Durante décadas alguém ouviu alguma queixa de banqueiros em relação ao Banco de Portugal? Estranho, não?
Mas durante muito tempo fomos ouvindo críticas de emitentes e financeiros à CMVM, de todo o tipo de comerciantes à ASAE e de grandes empresas à Autoridade da Concorrência (AdC) logo nos primeiros anos de actividade desta.
Aliás, o que se passou com a AdC é paradigmático. Para a sua fundação foi nomeado presidente um académico de mau feitio, uma espécie de ET do mundo empresarial português que alguns apelidavam de louco. Abel Mateus incomodou as empresas de combustíveis, vigiou farmácias e farmacêuticas e abriu uma guerra com a PT, por exemplo. Invocar, nessa altura, o nome da AdC deixava mal disposto meio PSI-20.
Certamente não por acaso, quando José Sócrates e Manuel Pinho quiseram “amansar” a AdC, foram recrutar o novo presidente onde? Ao Banco de Portugal, obviamente. Cedo se percebeu que o perfil de regulação de Manuel Sebastião, maturado na cultura do banco central, estava nos antípodas do de Abel Mateus. E a AdC deixou de incomodar muita gente.
Este é um exemplo apenas, simbólico. Mas que nos deve fazer pensar no perfil de regulação e supervisão que queremos e que melhor serve os cidadãos e os contribuintes.
Quando se trata de meter os leões na ordem se calhar é má ideia mandar uma brigada de gatos fofinhos que nem sabem pôr as garras de fora.
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