A conserveira Pinhais, em Matosinhos, mantém as mesmas receitas e métodos há 100 anos. Esse foi o segredo para superar muitas crises. Incluindo a da Covid.
A Pinhais, localizada no coração de Matosinhos, acaba de comemorar 100 anos de história. Foi fundada por quatro sócios em 1920 e tem vindo a singrar ao longo do século. Resistiu à segunda guerra mundial, à crise do petróleo e do azeite, ao 25 de abril, à crise de 2010 e, agora, enfrenta a pandemia do novo coronavírus.
As receitas prevalecem no tempo, assim como o método tradicional que ainda hoje assenta em técnicas ancestrais. A resiliência, aliada ao método tradicional, faz parte do segredo da longevidade da conserveira. Hoje, exporta 95% da produção para 27 mercados à volta do globo.
Assume-se, por isso, como a única fábrica de conservas em Portugal a privilegiar este método de fabrico. Do corte e preparação do peixe ao processo de empapelar, tudo é manual.
Das mãos dos 121 colaboradores, 80% mulheres, são produzidas quatro milhões de latas por ano. “Manter o processo tradicional é o que nos distingue hoje em dia“, explica ao ECO a diretora de marketing da empresa, Patrícia Sousa.
António Pinhal, que representa a terceira geração da conserveira fundada pelo seu avô, conta que a produção artesanal tem um papel central na “identidade e qualidade” das conservas que produz. “Trabalhamos com a melhor sardinha e seguimos o mesmo ritual de preparação do pescado há décadas, assumindo o compromisso de manter viva esta arte que também é símbolo de Portugal”.
Mas não foi só a receita. Ao longo dos seus 100 anos de história, a Pinhais manteve também a localização original. Ao entrar na fábrica, é como se recuássemos no tempo. A fachada emblemática mantém a traça arquitetónica. Os azulejos parecem parados no tempo. Assim como o chão, que está gasto, fruto de todos os pés que por ali já passaram. Há ainda uma emblemática escadaria de madeira, ironicamente com a forma de sardinha.
Ao entrar na fábrica propriamente dita, as bancas de pedra são também as mesmas de há 100 anos. Mas mantém-se firmes e hirtas, até aos dias de hoje: “As colaboradoras estão a trabalhar o peixe da mesma forma que o faziam há 100 anos”, diz Patrícia Sousa. “Hoje entramos numa fábrica e os processos são todos industrializados. Aqui não”, reforça a diretora de marketing da Pinhais.
A técnica ancestral tem reflexo na produção. São cerca de 40 etapas que tornam o processo mais demorado do que o de uma fábrica automatizada: “Produzimos entre 25 mil a 30 mil latas de conservas por dia. Uma empresa industrializada produziria um milhão nesse mesmo dia”, destaca a responsável.
Para além da mascote da casa — a sardinha –, a Pinhais produz conservas de cavala, filetes de cavala, carapau ou ovas de sardinha. Trabalha também com quatro receitas que estão guardadas e fechadas a sete chaves: a das conservas em azeite, azeite picante, tomate e tomate picante. Em Portugal, o produto com mais saída é a sardinha em azeite. O mercado exterior prefere a sardinha em azeite picante.
Áustria e EUA, os principais destinos
Da fábrica Pinhais saem anualmente 25 camiões de conservas. A Áustria (62%), EUA (13%) e Itália (6%) são os principais mercados. Portugal “pesa” 5% das vendas. Comercialmente, são duas marcas associadas, a Pinhais e a Nuri. A primeira destina-se ao mercado nacional, a segunda foi criada em 1935 com o foco na exportação. Esta última tem uma particularidade: é toda “embalada” manualmente seguindo a arte de empapelar.
Na tarefa, ninguém bate Luzia Braga. Trabalha na Pinhais há 34 anos e garante ao ECO conseguir empapelar cerca de 300 latas de Nuri por hora. “A rapidez faz parte da prática, mas gosto muito daquilo que faço”, afirma, enquanto embrulha as latas a velocidade estonteante.
Confessa que já tem idade e descontos para a reforma. Optou por continuar a trabalhar: “Ainda não estou preparada para a reforma, gosto muito de trabalhar aqui e sinto-me muito bem”, destaca a trabalhadora.
“Nós mantemos a tradição sempre. E, para nós, é importante manter este processo. Não queremos que seja uma lata de conservas igual a todas as outras”, destaca a diretora de marketing, garantindo que essa é mais uma prova de que a Pinhais dá grande importância a manter a tradição.
O segredo do sucesso
Em 100 anos, muita coisa mudou no mundo. Mas, na Pinhais, só mudou mesmo a embalagem. A receita e o método continuam a ser os mesmos e até o peixe continua a ser comprado todas as manhãs na lota.
Emília Braga é quem tem essa tarefa e trabalha na conserveira há 28 anos. Vai todas as manhas à lota escolher o melhor peixe e garante que, quando não encontra qualidade, não compra. “Quando o peixe não tem a qualidade que nós procuramos, nós não compramos. O que interessa aqui é a qualidade, somos nós que compramos o melhor peixe. A nossa empresa não trabalha com peixe congelado.”
A diretora de marketing destaca que as colaboradoras da Pinhal “são o ponto número um de qualidade”. “Se a sardinha não tiver em condições, as nossas colaboradoras tem indicação para o separar. É preciso um cuidado muito grande e é um trabalho que requer muito pormenor”, refere Patrícia Sousa.
“Um dos nossos objetivos é garantir que compramos o peixe da melhor qualidade e que mantemos o processo tradicional em toda a produção. Temos um respeito muito grande pela matéria-prima”, refere.
Patrícia Sousa destaca ainda a importância da escolha do peixe. Conta que mesmo António Pinhal Júnior, pai de António Pinhal, da segunda geração da Pinhais, teve como primeira tarefa na empresa ir buscar o pescado à lota. Aí, passou 14 anos a aprender como se compra peixe.
No final do processo, todas as latas, sem exceção, ficam a “marinar” por dois meses. “Nós não vendemos peixe cozido em lata, nós fazemos uma receita e queremos que o peixe absorva todo o sabor, seja do piri-piri, do molho de tomate, ou mesmo do azeite”, explica Patrícia Sousa. Faz uma analogia: refere que “as conservas são como o Vinho do Porto”. “Quanto mais tempo estiverem a repousar, melhores ficam. A consistência não se perde e o sabor vai ganhar muito mais com o tempo.”
O processo é minucioso, mas a boa disposição das colaboradoras é garantida. Emília Afurada trabalha na Pinhais há 52 anos. Diz que já passou por todas as secções e que até “trabalho de homem” já fez: “Dei tudo a esta fábrica.”
Conta ao ECO que, no final deste ano, vai “dizer adeus à rica fábrica” e regressará a casa para gozar da merecida reforma. Confessa que o momento de partir será triste, mas que vai embora com o sentimento de missão cumprida. “Já chega de trabalhar, está na altura de viver um bocadinho a minha reforma”, atira.
Sobrevivendo a todas as crises
Recuando a 1920, a Pinhais foi fundada por dois irmãos pescadores — Manuel Pinhal e António Pinhal, um banqueiro, o outro empresário com conhecimentos na indústria da conservação. Na altura, Matosinhos era o epicentro das conserveiras. A indústria estava a desenvolver-se e havia uma necessidade muito grande de abastecer o país com conservas de peixe.
Na segunda guerra mundial, a indústria acabaria por sofrer uma transformação e, com ela, surgiu a necessidade de mecanizar os processos para dar resposta à forte procura. Nessa altura, quem estava ao comando da empresa era António Pinhal Júnior, filho do fundador António Pinhal, que esteve à frente da empresa por 70 anos. António Pinhal Júnior recusou-se a industrializar o processo, indo contra a corrente e mantendo-se fiel ao método tradicional.
“Na altura da segunda guerra mundial, só em Matosinhos Sul eram 54 empresas” de conversas. “Hoje, são duas”, conta a diretora de marketing da Pinhais. “Se tivéssemos mecanizado, não teríamos conseguido subsistir. A verdade é que não estaríamos aqui a comemorar os 100 anos se a segunda geração não tivesse tomado essa decisão”, conta Patrícia Sousa.
E porquê? A responsável explica: “Muitos industriais endividaram-se junto da banca para industrializarem os processos. Acabam por falir quando a procura voltou a diminuir.”
A Pinhais resistiu a essa transformação. Mas, em 2016, depara-se com outra dificuldade, desta vez financeira. É então decido vender a empresa a um grupo austríaco, chamado Glatz, que já era o maior cliente da empresa, e que comprava conservas desde 1935. Porém, o negócio só aconteceu com uma única condição: manter a autenticidade de todo o processo. “É assim que nós somos conhecidos e o método tradicional é o que nos distingue hoje em dia”, destaca a diretora de marketing da conserveira.
Em 2017, a fábrica retomou a produção e integrou todas as pessoas que trabalhavam na conserveira, retomando a produção de convervas de peixe a todo o gás. Passados dois anos, e em plena pandemia, a marca aposta também numa loja online, que está a “superar as expectativas”. Chega a mais de 40 nacionalidades.
Atualmente, mesmo perante a crise que se alastra com o novo coronavírus, a Pinhais prevê um crescimento este ano na ordem dos 30% face ao ano passado. “O impacto da Covid-19 teve dois efeitos: enquanto em Portugal as vendas sofreram um decréscimo, nos mercados externos as vendas aumentaram”, conta Patrícia Sousa.
Vai nascer um museu na Pinhais
A história é feita de marcos e o próximo será a abertura do Museu Pinhais. “É a nossa grande aposta para 2021”, destaca a responsável.
A pandemia atrasou o projeto. O objetivo era o de inaugurar o museu no dia da comemoração dos 100 anos, esta sexta-feira, 23 de outubro. Como a Covid-19 trocou as voltas a tudo, a previsão de abertura será para o verão do próximo ano. “Apontamos para junho, julho do próximo ano, se tudo correr como o planeado. O projeto envolve algumas obras estratégicas a nível da fábrica e as obras, à partida, vão começar dia 16 de novembro”, diz a diretora de marketing.
“As pessoas vão ter a possibilidade de ver como era uma fábrica há 100 anos”, afirma Patrícia Sousa. Para além desta visita, a Pinhais, juntamente com a Câmara Municipal de Matosinhos, vai transformar um armazém — a antiga oficina — numa zona de exposição com uma área de degustação. Afinal, tal como a tradição, o sabor também conta.
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Pinhais conserva um século de tradição. Nunca quis “ter uma lata igual às outras”
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