Relato de um dia de cobertura do fogo em Vila de Rei. O poder das chamas, a ameaça à aldeia de Penedo, a coragem dos habitantes e o contrafogo dos espanhóis, essencial para travar o incêndio.
Na segunda-feira, a equipa da Tomar TV partiu de Tomar com câmaras e microfones. Do horizonte, erguia-se uma nuvem de fumo como se houvesse uma guerra lá ao longe. Pelo caminho, quilómetros e quilómetros de paisagem negra pintada de fresco. Passámos pelo Lago Azul, em Ferreira do Zêzere, que deixara de existir com o fogo no dia anterior. Chegados a Vila de Rei, a guerra era outra.
O incêndio lavrava intensamente. Encontrámos uma via que levava ao fogo e seguimos. Bastou um minuto para a estrada por onde tínhamos passado se transformar num inferno. O lume agarrava-se aos eucaliptos e às acácias. Lavrava na base dos pinheiros e propagava-se velozmente. Um instante depois, já não havia sinal dos bombeiros que estavam junto ao cruzamento. Ficámos, três, por nossa conta e risco. E mais o fumo, que irrita o nariz e faz lacrimejar.
É uma coisa estranha, o fogo. Enquanto desperta a curiosidade, assusta e repele ao mesmo tempo. Quem o encara, fica sempre com aquela sensação de pequenez. Aquilo devolve-nos à realidade. Lembra-nos de que nunca estamos totalmente no comando. Mas é demais. Parece uma maldição. A região centro do país, já acostumada aos incêndios florestais, vai sair gravemente ferida deste verão de 2017.
Também é difícil ter meios para tantos quilómetros de terreno. Estranhamente, o fogo avança e logo recua, como se quisesse consumir o que escapou à primeira leva. Veem-se passar carros de comando de várias regiões de Portugal, de Vila Franca de Xira a Caxarias, entre muitas outras. Desconfia-se da coordenação, ou de como é ela possível quando estão no terreno dezenas de corporações e milhares de operacionais.
Naquele instante e local, não muito longe do Penedo Furado, já só restava a via do “deixa arder”. Eram várias as localidades em risco e as evacuações em curso. As chamas, indiferentes, seguiam na nossa direção. Uivavam e bradavam, gritando liberdade. “O fogo também fala”, atirou um colega, de câmara fotográfica em punho, a quem uma década de experiência como bombeiro lhe dava alguma tranquilidade.
Mas não muita. Não conhecer o terreno dificulta bastante. E é nessa situação que se encontram muitos bombeiros, que se deslocam de concelhos vizinhos ou de quartéis muito distantes, para ajudarem no combate às chamas. Recorrendo à lógica “o que já ardeu não arde”, decidimos recuar para onde o incêndio já tinha queimado. Vimos uma placa a dizer “Zona Industrial” e os níveis de adrenalina baixaram. Se havia ali fábricas, tinha de haver quem as estivesse a defender. Nada mais errado.
Rapidamente percebemos que continuávamos sozinhos. Aquela estrutura estava votada ao destino que, pelo andar da carruagem, não deveria ser o melhor. De um lado, o fogo queimava descontroladamente e avançava. Do outro, as chamas já ardiam nas copas das árvores. Estarmos num descampado transmitia acalmia, mas a inalação de fumo preocupava. O carro estava protegido bem no meio. E o helicóptero que voava lá no alto, o único sinal de vida naquelas redondezas, parecia olhar para nós e dizer: “O que raio estão aí a fazer em baixo?”
Decidimos voltar atrás e procurar uma entrada para a estrada principal que seguia sobre um viaduto mais adiante. Por entre o fumo, lá encontrámos novamente o tal cruzamento e a entrada para a via rápida, que estava cortada ao trânsito. Escolhemos o sentido Abrantes e arrancámos, até nos depararmos com uma unidade de combate a operar na berma. Foi nesta altura que percebi que o fogo não se apaga só com água.
Combater o fogo com fogo
Em Portugal, desde 2009 que existem restrições ao uso de fogo para suprimir o avançar de uma frente. Não é totalmente proibido, sim, mas há burocracias envolvidas, autorizações superiores que precisam de ser dadas e autoridades especiais que devem estar presentes. A lei causou polémica. No dia em que entrou em vigor, o Diário de Notícias citava o então presidente do Conselho Nacional Operacional, José Campos, que referia que o novo regime só vinha “complicar” o trabalho dos bombeiros e “causar algumas fricções”.
Haverá mesmo registo de bombeiros que, segundo o jornal, foram advertidos com prisão quando tencionavam levar a cabo um contrafogo. Ainda assim, o método foi usado em força no incêndio que começou em Ferreira do Zêzere na última sexta-feira, e que se propagou aos concelhos de Alvaiázere, Vila de Rei, Mação e até Figueiró dos Vinhos — não pelos portugueses, mas sim pelos espanhóis. Testemunhámo-lo duas vezes, na tarde de segunda-feira e na madrugada de terça-feira.
Ao abrigo de protocolos europeus, Espanha deslocou para Portugal a Unidad Militar de Emergencias, militares altamente treinados para situações como aquela. Junto à via rápida onde parámos, quem lá estava era a unidade BIEM V de Leão. E era precisamente um contrafogo o que ali estavam a fazer. A linha entre o queimado e a floresta ainda verde tornavam evidente que o fogo ardera dali para a frente, indo ao encontro da frente descontrolada que para ali se dirigia.
Um jipe espanhol estava estacionado em pleno mato denso, como que dizendo ao fogo: “Daqui não passas.” Depois de ali permanecermos quase meia hora a acompanhar os trabalhos, ficámos com a ideia de que fora aquela barreira a impedir o incêndio de chegar a Vila de Rei.
A nordeste de Penedo Furado fica uma pequena povoação chamada Penedo. Quando lá chegámos, ao final da tarde de segunda-feira, a aldeia já tinha recebido ordem de evacuação. Transmitimos em direto na Tomar TV as imagens da serra a arder, com o fogo a descer encosta abaixo.
Viriato Gaspar, morador do Penedo, afirmou: “Apareceu aqui um carro e disseram: ‘Vamos todos para Vila de Rei, não pode ficar ninguém na povoação.’ Eu disse: ‘você deve ser é maluco, eu não tenho medo do lume.’ Apareceram também os bombeiros e dissemos: ‘Daqui não sai ninguém, pensa que vou deixar que os meus barracões ardam todos?'” Falava a voz de quem viu aquele filme oito vezes em sete décadas de vida.
Feita a reportagem, voltámos a Tomar para carregar baterias. À meia-noite, rumámos a Mação. Vimos a localidade de Amêndoa ameaçada pelas chamas, o fogo perto de casas, as máquinas de rasto do exército a abrirem caminho e a população com o coração nas mãos. Passámos ainda por Chão de Lopes e Chão de Codes, onde o vice-presidente da Câmara Municipal, António Louro, nos fez o ponto de situação, acabando por reclamar mais e melhor apoio por parte do Governo, reconhecendo ainda um problema estrutural na gestão das florestas e prevenção dos incêndios em Portugal.
Apareceu aqui um carro e disseram: ‘Vamos todos para Vila de Rei, não pode ficar ninguém na povoação.’ Eu disse: ‘você deve ser é maluco, eu não tenho medo do lume.’
Penedo queimado
Na volta, optámos por regressar ao Penedo. Já passava das quatro da manhã quando lá chegámos e a serra ainda sucumbia à força das chamas. Também havia fogo num outro lado da aldeia. Apontámos as câmaras e ainda pensámos o pior. Mas não. Apesar do aparente descontrolo total, aquele era outro fogo controlado, levado a cabo pelos espanhóis do BIEM I de Madrid.
Sete militares e um conjunto de veículos que se contavam pelos dedos de uma mão foi quanto bastou para fazer uma barreira de floresta queimada naquele lado da aldeia. Alguém comenta que estes sete podem fazer mais do que 100 portugueses juntos, num comentário talvez injusto. Um deles tranquilizou-me: “Está tudo controlado”, disse. Outro gritou: “Está a 50%. Dá-lhe velocidade”, no momento em que as chamas ganharam ainda maior dimensão. Avistámos homens bem junto daquela parede de fogo, que iam assegurando que o controlo daquela operação.
De longe, a população assistia, já mais tranquila, mas preparada para combater caso se mostrasse necessário. Deixámos Penedo já perto das cinco e meia da manhã. Chegámos a Tomar às seis, com o sol a raiar. Para trás ainda ficou o fogo que, esta quarta-feira, à hora em que escrevo estas linhas, ainda lavra na região. Da janela vejo uma densa coluna de fumo, em forma de cogumelo, lá para aqueles lados. O fogo deve estar gigante. A noite promete ser longa. A guerra, essa, promete durar.
Com Orlando Oliveira, Tomás Duran e Rúben Gameiro, a equipa da Tomar TV no terreno.
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Quando o fogo ganha a força de um gigante
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