Um mês depois do arranque do IVA 0% em 46 bens alimentares essenciais, vendedores e clientes reiteram que a medida "é para inglês ver". Comerciantes já vêm preços a baixar, clientes nem tanto.
Na véspera em que se assinala um mês da entrada em vigor do IVA a 0% num cabaz de 46 produtos alimentares, é um dia normal, mas pouco movimentado no Mercado de Alvalade, num dos bairros mais típicos da capital. Comerciantes e clientes concordam que esta é uma medida para “inglês ver” e que “não faz grande mossa”, traduzindo-se apenas nuns “cêntimos” de poupança para as famílias portuguesas. E se os vendedores garantem que há já preços a baixar, os clientes estão mais desconfiados.
“Não faz grande mossa. É só para inglês ver”, afirma Rita Brás, quando questionada pelo ECO, sobre o impacto da medida. “Eu não senti quase nada”, corrobora Gisleine Prado, junto a uma banca de hortaliças. Estas duas jovens estão, neste momento, a frequentar um curso de cozinha e, como tal, asseguram que têm acompanhado as oscilações de preços. É “na carne e no peixe” que sentem as maiores subidas, mas, admitem que também a fruta está mais cara. Ainda assim, na hora de encher o carrinho de compras optam pelo mercado, ao invés das grandes superfícies.
“Somos cozinheiros, por isso, entre supermercado e mercado escolhemos o mercado por causa dos produtos frescos“, diz, entre risos, Rita Brás, referindo ainda que a ideia é também “ajudar o comércio local”. Ainda assim, tanto Rita como Gisleine realçam as “discrepâncias” entre os preços dos produtos das grandes superfícies e dos mercados locais. “A maior parte do valor vai para as grandes superfícies. É tudo negociado em quantidades gigantescas e isso provoca sempre oscilações de preços. A malta vai tentando igualar os preços em todo o lado e no mercado vão-se também aproveitando disso para conseguir ganhar algum”, remata Rita.
A opinião é partilhada por Maria Graciete Lopes, que, uns metros mais à frente, sublinha que o “produtor que é o que menos ganha” e insta o Governo a apoiar a agricultura. “Enquanto este Governo e outros não olharem para a agricultura com olhos de ver e incentivarem as pessoas a trabalharem a terra, nada vai mudar“, sinaliza a reformada, dando seu exemplo particular: “Eu infelizmente tenho olivais. Quero pessoal para trabalhar e se for a trabalhar os olivais, o que gasto não consigo tirar [da venda] do azeite. Não compensa”, atira, ao ECO.
Maria Graciete Lopes defende, por isso, que “são necessárias reformas profundas” e considera, que, os apoios prometidos à produção no âmbito do Pacto para a Estabilização e Redução de Preços dos Bens Alimentares e que ainda não foram pagos, são “insuficientes”. Apesar das subidas dos preços, a reformada, que vive atualmente em Telheiras, assume-se “fiel” ao Mercado de Alvalade. “É sempre aqui. Tem outra qualidade”, afirma, de sorriso no rosto, enquanto um dos vendedores a ajuda a levar os sacos até ao carro.
O atraso no pagamento dos apoios aos agricultores é, aliás, uma das críticas da Associação Portuguesa de Empresas de Distribuição (APED). Ao ECO, Gonçalo Lobo Xavier realça que os retalhistas cumpriram a sua parte, ao baixar o IVA dos 46 produtos e a promover a identificação dos produtos em questão. “Foram milhares de referências que tiveram de ser alteradas”, recorda o diretor-geral da APED, acrescentando que “nas lojas grandes chegaram a ser mais de seis mil” referências, o que “obrigou a um grande empenho das pessoas e investimento”.
Contudo, a APED sublinha que falta “uma parte muito, muito importante”: “Os agricultores não viram um único cêntimo até agora, apesar dos sucessivos anúncios. Isto é preocupante para nós“, diz, apontando que, por isso, a medida pode “não ter o efeito desejado”. A Confederação dos Agricultores Portugueses (CAP) corrobora: “Não há pagamentos de nada”, nem dos apoios referentes ao gasóleo agrícola ou da eletricidade que não estavam dependentes de candidaturas, disse Luís Mira, ao ECO. Para as restantes ajudas estão ainda a decorrer as candidaturas até dia 26.
Já o Ministério da Economia realça que o balanço da medida “é, até agora, positivo”, permitindo “uma redução do preço total médio do cabaz alimentar superior a 6%, ou seja, superior à isenção do IVA efetuada e ainda sem refletir os apoios à produção, entretanto aprovados pela Comissão Europeia, o que permitirá ajudar no processo de mitigação e redução dos preços dos bens alimentares”, adianta fonte oficial, ao ECO. Os últimos dados monitorizados pela Deco (e que abrangem 41 dos 46 produtos com IVA zero) apontam que este cabaz ficou 10,96 euros mais barato desde a entrada em vigor da medida, o equivalente a uma redução de quase 8%, passando a custar 127,81 euros.
A par das outras três clientes, também José Trindade diz não ter sentido quase nada com a entrada em vigor do IVA 0% e à semelhança de Gisleine tem a sensação de quem se aproveitasse antes da entrada em vigor da medida para subir os preços. “Muitos produtos aumentaram antes de o IVA ser posto a 0% e agora estão muitas vezes acima do valor inicial”, aponta, sem dar exemplos específicos. Por isso, insta o Executivo a tomar outras medidas: “Deem dinheiro às pessoas, diminuam os impostos”, atira o reformado, enquanto espera que lhe fatiem um pão.
“Ou fazem todos [os peixes] ou não fazem nenhum”
Também os comerciantes dizem que o impacto é diminuto e deixam algumas críticas. “Acho que não tem lógica. Ou fazem todos [os peixes] ou não fazem nenhum”, comenta um peixeiro, enquanto amanha uma dourada para um cliente. “O IVA 0% só tem seis peixes: pescada, carapau, sardinha, bacalhau, cavala e dourada. Só esses têm IVA 0% quando há mais de 350 espécies de peixe“, atira.
O peixeiro, que trabalha há mais de 20 anos no Mercado de Alvalade, assinala ainda que a maioria dos seus clientes compra “garoupa, corvina, robalo, atum fresco e esses não têm IVA 0%”, pelo que a medida não tem grande impacto para as famílias nem “beneficia em nada” os restaurantes, que têm também um grande peso para o seu negócio. Assim, e apesar de referir que a afluência dos clientes não é a mesma de outros tempos — ainda que seja “mais ao fim de semana”– o comerciante garante que “os clientes habituais compram o mesmo” e que há já preços a baixar há cerca de um ano.
“Baixou a garoupa, cherne, salmão, robalo do mar, carapau, os chocos… A única que aumentou foi isto”, diz, apontando para a lula da costa, cujo preço aumentou cerca de 15%. A posição é partilhada por Teresa Cruz, dona de outra banca no mesmo mercado lisboeta. Houve “um primeiro impacto”, nomeadamente no “salmão e no peixe que vinha de fora do país” com no início da guerra e “com a subida dos custos dos transportes marítimos”, mas já está a estabilizar. “Nos dias em que há pouco peixe e que o mar não deixa vir é caríssimo, mas depois quando o tempo volta a ficar mais calmo voltamos ao normal”, afiança.
Mas, ao contrário do seu colega, Teresa Cruz admite que o contexto macroeconómico já se faz sentir no negócio. “A clientela já foi mais. Agora estamos um bocadinho mais encolhidos”, sublinha acrescentando que “pessoas compram menos e queixam-se dos preços”. E ainda que não haja uma especial procura pelos peixes abrangidos pelo IVA 0%, a comerciante faz questão de os destacar nas placas do peixe: “É para as pessoas não se esquecerem. Mesmo que não se lembrem, eu lembro-as”, atira, entre risos.
Também Delfina Silva, vendedora de frutas e hortaliças, tem poucas expectativas sobre esta medida. “Não são uns cêntimos que vai fazer a diferença no orçamento mensal. O problema está é nas despesas das casas, das rendas, do que se tem que pagar os bancos… Tudo isso é que são centenas [de euros] que fazem diferença”, comenta a vendedora, ao ECO.
À semelhança dos seus colegas, Delfina afiança que há já alguns produtos a baixar de preço, dando como exemplo os brócolos que “estavam quase a cinco euros e já estão a 2,5 euros”. Ainda assim, admite, que, enquanto consumidora, “a carne está muito mais cara” e que enquanto vendedora a laranja foi dos produtos que mais teve e aumentar de preço. “A laranja era 1,20 euros por quilo (kg), agora está entre 1,80 euros/kg e 1,95 euros/kg”, aponta, sublinhando que o futuro é, para já, incerto: “Se as coisas baixarem eu baixo se as coisas aumentarem eu terei de aumentar”, remata.
Seca pode pressionar preços
A par dos comerciantes, também a APED admite que alguns produtos estão a descer de preço à boleia da descida dos preços dos fatores de produção, como a energia e os combustíveis. Contudo, realça que o futuro é ainda muito incerto, dado que ainda há “muitas áreas do negócios alimentar muito pressionadas com os aumentos” e dado problema da seca, que “se está a agudizar”, o mercado alimentar está “ainda longe de dar sinais de que os preços ou vão estabilizar ou vão descer”.
“Estamos a atingir temperaturas absolutamente inusitadas e há uma escassez de água que vai ter consequências também nas culturas”, avisa Gonçalo Lobo Xavier, acrescentando ainda que os efeitos da gripe das aves ou da gripe suína ainda são “duradouros”.
Por outro lado, o secretário-geral da CAP destaca que para que os consumidores venham a sentir algum efeito dos apoios à produção é preciso que os agricultores os recebam. “Mas há que ter noção de que não é com um apoio de 180 milhões de euros terá um efeito que faça baixar os preços. Ainda por cima com o aumento dos cursos por causa da seca temo que essa visibilidade seja reduzida“, afirma Luís Mira, ao ECO. À semelhança da APED, o secretário-geral da CAP alerta que a seca veio “alterar completamente” o panorama das coisas. “Com uma seca destas em Espanha, Portugal e sul de França o que consigo prever é que as coisas têm todas tendência para aumentar de preços”, avisa.
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Um mês depois, IVA zero só traz “uns cêntimos” de poupança no bolso das famílias
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