A verdadeira história das avaliações das agências de rating sobre a Caixa
As agências de rating DBRS e S&P revelaram preocupações sobre o futuro da CGD. Será mesmo por causa da demissão de António Domingues ou antecipam riscos mais profundos? Sim, é melhor pensar outra vez.
A DBRS pôs a CGD em vigilância negativa, a S&P mantém uma vigilância positiva, mas deixa avisos para o que está aí ao virar da esquina. Em ambos os casos, para que não haja equívocos, as razões são bem mais fundas, e preocupantes, do que a demissão de António Domingues. As agências de rating estão a olhar para as mudanças de estratégia do governo nos últimos meses, a limpeza do mal-parado já em 2016 e o aumento de capital adiado para 2017. Para onde vão os rácios de capital, as almofadas financeiras? E o que será, afinal, a nova CGD?
Um dia depois de ser conhecida a decisão de António Domingues de pedir a renúncia ao cargo de presidente da CGD, a DBRS, a famosa agência canadiana que está a segurar o rating da dívida pública da República, lançou a bomba:
- A reavaliação da notação de crédito atribuída à Caixa reflete “os riscos acrescidos que o grupo enfrenta por causa das questões da sua gestão administrativa, a recapitalização planeada, e as dificuldades do grupo em melhorar a sua rendibilidade e a qualidade dos ativos”.
- “A recente demissão da administração da Caixa coloca, no ponto de vista da DBRS, acrescidos desafios ao grupo para regressar às rendibilidades positivas, reduzir os problemas com a qualidade dos ativos e melhorar a confiança dos investidores no grupo”.
A avaliação da DBRS, tão rápida como surpreendente, foi lida como uma resposta imediata à saída de Domingues. A explicação, como sucede tantas vezes, é mais complexa. E de alguma maneira, mais clara nas notas da S&P.
- “A S&P mantém o pendor positivo sobre os ratings de longo prazo da CGD. Entendemos que o acordo de princípio [em torno do plano de recapitalização] anunciado em agosto continua em cima da mesa e que o Governo está a trabalhar no sentido de encontrar um substituto para a gestão da CGD”.
- “Vamos monitorizar de muito perto se os recentes desenvolvimentos resultam em qualquer alteração estratégica ou mudanças no plano de recapitalização já anunciado, incluindo o tempo que demorará a ser materializado“.
Lidos de forma direta, os dois comunicados, divulgados em dias seguidos, quase parecem contraditórios. Não são. São complementares, mas acentuam aspetos diferentes da mesma realidade. E qual é essa realidade? A desconfiança dos analistas sobre uma estratégia assente no certo – as imparidades assumidas em 2016, com consequências nas almofadas de capital da Caixa – e no incerto – o aumento de capital para reforçar o balanço do banco público apenas em 2017. Num banco que já tem os seus rácios no limite e, por isso mesmo é que não foi capaz de reembolsar os 900 milhões de euros de empréstimo concedido pelo próprio dono, o Estado. Estranho? Faz parte das regras europeias em que hoje estamos. O Estado, enquanto dono, é igual aos outros donos privados de bancos. E se avança com um empréstimo, tem de recebê-lo de volta. Mesmo quando se trata de um banco que é público.
Afinal, qual seria o impacto desse reembolso? Afetaria negativamente indicadores que a Caixa está obrigada a cumprir, sob pena de ser intervencionada. E com as regras de hoje, uma intervenção num banco, público ou privado, faz-se através de um bail-in, ou seja, envolvendo acionistas, obrigacionistas e depositantes.
Existem dois rácios de capital relevantes, mas há um para o qual os investidores e os supervisores olham com toda a atenção: de acordo com as contas relativas a setembro, o rácio Common Equity Tier 1 Phased-in atingiu os 10,2% e o Fully Implemented [o que conta para investidores] foi de 9,3%.
Há muito se sabia que o banco público tinha de aumentar o capital para reforçar aqueles indicadores, particularmente o ‘fully’ para um valor em torno dos 12,5%. O anterior presidente, José de Matos, já tinha pedido esse reforço ao anterior governo, e o atual assumiu o discurso de que a recapitalização era essencial e, sobretudo, urgente. Para quê? Para a CGD ter um balanço robusto para financiar as empresas, particularmente as falhas de mercado que afetam de forma relevante as PME. É o que se espera de um banco público, certo? Senão, se alinha em tudo com o setor privado, que seja mesmo privado e com dinheiro do dito.
Quanto é que custa esse rácio de 12,5%? Contas grosseiras, cada ponto no rácio de capital da CGD exige cerca de 600 milhões de euros de capital, mantendo-se tudo o resto constante. Note-se, aqui, que as mudanças de regras no que são os chamados ‘ativos ponderados pelo risco’ podem terão alguma influência nestas contas. E, claro, na estratégia implícita da CGD já estava o dinheiro da capitalização, mas também a venda de operações no estrangeiro que ajudam a melhorar esses indicadores e ainda a diminuição da própria atividade. Sim, se der menos crédito, precisa de menos capital.
O plano de reestruturação negociado pelo ministro Mário Centeno e por António Domingues com a direção-geral da Concorrência, em Bruxelas, assenta em vários eixos, dos quais o mais relevante é a capitalização.
- Cerca de 2,7 mil milhões de euros de dinheiro público direto, via Orçamento do Estado.
- Mil milhões de euros colocado no mercado junto de investidores privados através de duas emissões de 500 milhões de euros. Ainda não se sabe a que preço, mas seguramente, acima de 10%.
- Transformação de 900 milhões de euros de empréstimo do Estado, sob a forma de CoCos (obrigações contingentes), em capital. E ainda 60 milhões devidos de juros, também em capital.
- Incorporação de 500 milhões de ações da Parcaixa.
As negociações foram duras, mas Bruxelas deu o seu ok a uma recapitalização que escapava ao caráter de ‘ajuda de Estado’. E exigiu contrapartidas: a CGD teria de passar por uma reestruturação profunda, com rescisões, fechos de balcões e vendas de ativos, e teria também de envolver os investidores privados nesta recapitalização, para garantir que a operação seria feita em condições de mercado. Daí a emissão de mil milhões de euros de obrigações que, diga-se, são excecionalmente subordinadas, ou seja, são consideradas próximas do que é a titularidade de ações.
O problema é que, para as agências de rating, o mundo mudou, e não foi por causa da saída de Domingues, foi antes disso. A renúncia só agravou estas mudanças. Ao longo dos últimos meses, ainda com o presidente cessante, o que seria uma operação de aumento de capital de mais de cinco mil milhões de euros para melhorar os rácios de capital passou a incluir outras coisas.
As dúvidas sobre o montante de capitalização levaram o governo e Domingues a defender a narrativa de que seria necessário fazer uma limpeza agressiva das operações de crédito já seriam um buraco efetivo nas contas e não apenas teórico ou potencial. Foi, neste momento, que surgiu a opção anunciada e uma estratégia agressiva de contabilização de provisões já em 2016 – sem efeitos nos rácios e com efeitos muito positivos nos resultados logo a seguir. Já na última semana, soube-se, o aumento de capital que seria feito em simultâneo, afinal, só avançaria no próximo ano. E veremos em que condições.
As informações públicas sobre a estratégia da administração cessante eram limitadas, mas já se tinha percebido que o volume de provisões, para limpar o crédito mal-parado, seria agressivo, superior a mil milhões de euros. Como é que isto funciona? Identificam-se os créditos que já serão de difícil recuperação e aplica-se uma provisão correspondente à percentagem do crédito que o banco dá como perdida. Um empréstimo a uma qualquer empresa poderia, nesta estratégia, passar de uma provisão de 20%, portanto, com a expetativa de reembolso do banco de 80% do crédito em falta, para o oposto: 80% de provisão e apenas 20% de expetativa de recebimento do que ainda está em falta.
Esta operação não melhora os rácios, pelo contrário, manda-os abaixo. Mas se os analistas não esperavam um tal volume de provisões – afinal, o mais difícil já estava feito, dizia a versão oficial, do governo anterior e dos supervisores, além da própria troika -, esperavam ainda menos um adiamento de uma recapitalização, essa sim essencial para melhorar as almofadas da Caixa.
Por outras palavras, agora existem dúvidas sobre a concretização da capitalização da Caixa na dimensão pública, mas sobretudo na dimensão privada. É o que se lê, por exemplo, na análise da S&P: “Uma futura ação em relação ao rating da CGD está dependente da aprovação formal por parte da Comissão Europeia do plano de recapitalização e da avaliação que vão fazer acerca dos detalhes específicos da operação (montantes e forma de uso da injeção de capital público)”. E a DBRS? “A DBRS vê o sucesso da colocação dos instrumentos subordinados no mercado [privado] como desafiante, tendo em conta a presente volatilidade financeira global e o acesso muito limitado da Caixa ao mercado de financiamento sem garantias”.
Afinal, quem estará disposto a investir – melhor, a emprestar – mil milhões de euros na CGD? Com estas confusões, que a saída de Domingues só serve para acentuar, com a politização de um banco que, mesmo em circunstâncias normais, já teria dificuldade em mudar de vida? É bom recordar que nenhum banco português foi ao mercado desde 2011, e não foi por falta de vontade, foi por falta de procura dos investidores.
A DBRS e a S&P estão ‘apenas’ a ser racionais nas suas avaliações. O que vêm justifica as maiores preocupações sobre o futuro do banco público. Não é por acaso que António Nogueira Leite, economista e antigo vice-presidente da CGD, dizia, há dias, ao ECO que o risco de ‘bail-in’, leia-se resgate, do banco público está limitado, mas não está totalmente afastado. Isso está dependente da capitalização.
Bruxelas e o BCE mantêm presente o risco de ‘bail-in’, também porque ajuda à narrativa de necessidade de privatização parcial do banco público, o maior do sistema em Portugal com uma quota superior a 25%. Uma intervenção deste tipo, desta gravidade, será sempre pouco provável, porque é um banco público e isso arrastaria necessariamente a própria dívida pública da República. Logo, voltaríamos a um ambiente de incerteza no euro que ninguém quer. Já basta a Grécia, o Brexit, Trump e os nacionalismos que por aí andam.
Dito isto, as autoridades políticas portuguesas ajudaram à festa com esta gestão da CGD que dura há um ano. Leu bem, um ano em que o banco público está entregue à sua sorte. No mínimo, suscita desconfiança, no máximo pode materializar as avaliações das agências de rating. É isto mesmo que a DBRS e a S&P estão a dizer aos investidores e ao mundo. Querem pior?
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