As vezes em que Marcelo falou antes de tempo

Antes de chegar ao cargo, já o próprio dizia que iria ser um "Presidente hiperativo". Essa caraterística já lhe valeu elogios, mas também críticas. Mas há um perigo inerente: quando fala de mais.

Até às eleições presidenciais, Marcelo Rebelo de Sousa foi presença assídua na televisão aos domingos à noite. Depois de ter passado anos na rádio, foi entre a RTP e a TVI que se popularizou, após ser candidato a Lisboa e líder da oposição como presidente do PSD. Mas desde que entrou em campanha e até hoje, o Presidente da República tem presença mediática todos os dias. Na sexta-feira passada anunciou que a Fitch ia manter o rating de Portugal, mesmo antes de a própria Fitch o ter anunciado.

Este é um episódio, mas em menos de um ano há mais. Na opinião publicada multiplicam-se as críticas à exposição de Marcelo. É apelidado de Presidente-celebridade, Presidente das selfies e Presidente dos afetos. Mas é também o Presidente que, em certos momentos, falou para lá do que seria expectável. Além de quebrar o embargo da agência de notação financeira, Marcelo já tinha tido um “feeling”, uma previsão falhada na CGD, um anúncio de uma “boa surpresa” nas receitas fiscais e um teatro negocial na Cornucópia.

Marcelo é Fitch, mas será que a Fitch é Marcelo?

A tarde da última sexta-feira estava a iniciar quando o Presidente da República decidiu anunciar aos jornalistas que a Fitch ia manter o rating de Portugal. A bolsa lisboeta estava aberta. A agência de rating só viria a anunciar a decisão após o fecho de Wall Street, ou seja, às 21h00, horas de Lisboa. Mas antes disso, depois da hora de almoço, Marcelo Rebelo de Sousa assumiu o papel de porta-voz da Fitch, quebrando o embargo e as regras europeias, embalado pelo anúncio de “boas notícias”.

Na sua vontade de “puxar para cima”, Marcelo não cumpriu as regras. A Comissão do Mercado de Valores Mobiliários tem uma página totalmente dedicada ao abuso de informação privilegiada. Além disso, a CMVM tem ainda uma página sobre os entendimentos do regulador sobre a divulgação dessa informação. “Quem esteja na posse de informação privilegiada não pode transmitir essa informação, fora do âmbito normal das suas funções“, pode ler-se no primeiro documento. No segundo, a CMVM dá exemplos de informação privilegiada indiretamente relacionada com o emitente, como é o caso de “publicação (próxima) de relatórios de notação de risco”.

No final dos seus entendimentos, a CMVM deixa um conselho sobre que condutas devem adotar entidades com acesso a informação privilegiada. Entre as várias recomendações leem-se duas fundamentais para este caso: “Restringir o conhecimento dessa informação até à sua divulgação pública” e “divulgar publicamente essa informação após o encerramento dos mercados”. No primeiro caso, o Presidente da República antecipou-se e, no segundo caso, à hora em que falou, a bolsa lisboeta e o mercado secundário da dívida ainda estavam a transacionar.

"Divulgar publicamente essa informação após o encerramento dos mercados.”

CMVM

Entendimentos da CMVM sobre a Divulgação de Informação Privilegiada por Emitentes

Mas não é só em Portugal que o anúncio de Marcelo pode causar problemas. É que a Fitch avalia o risco da dívida soberana, transacionada internacionalmente. Tal como acontece nos resultados das empresas, os anúncios relativos aos updates nas avaliações do rating são feitos quando os mercados estão fechados. Além disso, normalmente as agências de notação financeira pronunciam-se à sexta-feira, seguindo-se o fim-de-semana, altura em que a bolsa está fechada.

Ao final da tarde, Marcelo Rebelo de Sousa falou novamente aos jornalistas para justificar o seu anúncio antecipado: “Os operadores anteviam o que se ia passar e eu considerei que era positivo haver a expectativa”, argumentou, revelando logo de seguida que “as outras duas agências [Moody’s e Standard & Poor’s] também se vão pronunciar e eu desde já digo que a expectativa que tenho é que não haja um piorar do juízo em relação a Portugal e haja um compasso de espera aguardando a posição das instituições europeias“.

Marcelo got a feeling

A 9 de dezembro, Marcelo Rebelo de Sousa revelou o seu estado de alma, em reação à queda das exportações de bens em outubro: “Eu não sei porquê tenho um ‘feeling’ — sabe que o Presidente da República de vez em quando tem ‘feelings’ — que as exportações em novembro vão subir claramente. Veremos se o ‘feeling’ se confirma”. “É uma intuição que tenho, que as exportações, nomeadamente para fora da Europa, podem de repente crescer muito em novembro. E se for assim, ficamos todos mais felizes“, revelou nesse dia.

António Costa estava ao lado e anuiu: “Nós acompanhamos sempre os ‘feelings’ do senhor Presidente da República. Os dados globais são consistentes sobre a reanimação que a economia tem vindo a ter e que vai continuar a ter. Estamos confiantes sobre o futuro”, disse o primeiro-ministro. Um mês depois, a 9 de janeiro, os dados chegaram e confirmaram o feeling: as exportações de bens subiram em novembro, apesar de as importações terem aumentado ainda mais e, por isso, a balança comercial ter-se degradado.

O verão quente da CGD

O dossiê Caixa Geral de Depósitos dominou o ano de 2016, mas principalmente o verão. Nesses dias quentes, a 5 de julho, Marcelo Rebelo de Sousa anunciou que a nova administração entraria em funções dentro de “10 a 12 dias”. Nessa altura estava iminente um período vazio na gestão da CGD, uma vez que o mandato da então administração já tinha sido expandido e estava prestes a terminar.

“A informação que tenho é que a administração que vai sair e que escreveu a carta há 15 dias aceitou ficar até hoje, isto é, até haver a substituição. Portanto, já depois da carta aceitou ficar até entrar uma nova administração que eu espero que aconteça nos próximos 10 a 12 dias”, garantiu. Mas o Presidente falhou na previsão. Só 57 dias depois é que António Domingues tomou posse enquanto presidente executivo da Caixa Geral de Depósitos, a 31 de agosto.

A “surpresa boa” nas receitas fiscais

Os feelings de Marcelo estão também na execução orçamental. Nas últimas semanas tem sido comum ver o Presidente da República a admitir um défice “claramente inferior a 3%”, ou até para lá de “2,3%, não sei se 2,2%”, disse na entrevista à SIC sobre o seu primeiro ano de mandato. Mas já em outubro, pouco tempo antes de se começar a discutir o Orçamento do Estado para 2017, Marcelo Rebelo de Sousa pronunciou-se sobre a execução orçamental até agosto, no dia em que foi revelada uma nota da UTAO.

Na altura projetou para o futuro, tal como fez com as exportações de bens: “Relativamente às receitas fiscais, vale a pena esperar uns dias, até se saber a receita fiscal do mês de setembro. Talvez possa ser uma surpresa boa, no sentido de que as receitas permitam atingir aquilo que eu tenho dito, repetidamente, ao longo dos meses”, pré-anunciou a 4 de outubro. No final de novembro, quando a DGO revelou a síntese de execução orçamental até outubro, verificou-se a melhoria – a receita fiscal até agosto estava a cair 0,2%, face ao mesmo período do ano anterior, mas em setembro inverteu a tendência aumentando 0,7%, graças aos impostos indiretos.

O teatro negocial da Cornucópia

O palco não era dele, mas quem montou o espetáculo foi Marcelo Rebelo de Sousa. A filmar tudo estavam as principais televisões do país. A emissão foi para o país todo: o Presidente da República cria uma nova corrente teatral, uma autêntica peça negocial, onde os protagonistas foram o diretor do Teatro da Cornucópia, Luís Miguel Cintra, a codiretora, Cristina Reis, e o ministro da Cultura, Luís Castro Mendes.

Anunciado o encerramento do Teatro da Cornucópia, Marcelo decidiu ir à última sessão para abrir o ato de negociação entre o Governo e a companhia. Depois de já ter a seu lado os dois responsáveis do teatro, o chefe de Estado chamou o acabado de chegar ministro da Cultura: “Sente aí, que estávamos aqui a ouvir, e eles estavam a narrar”, atirou o narrador omnipresente desta história. Foram longos minutos de troca de ideias com as câmaras ligadas e os jornalistas a assistir.

No final, Marcelo transformou-se em cenógrafo e fez o retrato daquela peça: “Mas hoje, dia 17 de dezembro de 2016, aquilo que eu ouvi dizer foi: nós estamos na disposição de repensar no sentido de continuar. Diz o senhor ministro: pois muito bem, nós estamos a falar, passamos a falar nessa onda. Até agora estávamos a falar na onda de fechar, a partir de agora passamos a falar na onda de não fechar, de fazer, ver se é possível. Eu acho que é isso que importa fazer”.

Marcelo Rebelo de Sousa vai mais longe, referindo que a Cornucópia é diferente. “Então aí o Ministério continua a falar convosco, sempre no quadro de que são uma exceção, porque são um caso diferente dos outros casos, para ver se é possível esse cenário”, atirou, dizendo depois a Luís Castro Mendes que “foi boa ideia ter cancelado a ida a Castelo Branco, porque isto permite aqui, nesta nesga de esperança, ter aqui a sua presença, que é importante”. “E isto não é uma forma de pressão sobre o Ministério“, garantiu.

Antes de se levantar, Marcelo Rebelo de Sousa ainda disse mais: “Algum dia eu teria o sonho de não estar sentado na cadeira e vir a discutir aqui para o palco, é sempre o sonho de todos os espetadores”.

Estes cinco casos são exemplificativos das principais situações em que o Presidente da República terá falado de mais, mas existem outros incidentes mais pequenos. É o caso da indicação da eurodeputada do PS, Elisa Ferreira, para o Banco de Portugal, nomeação que Marcelo revelou, indiretamente, num jantar em Estrasburgo com eurodeputados antes do Governo e BdP fazer o anúncio oficial.

Além disso, na visita de Estado que fez a Moçambique, Marcelo Rebelo de Sousa admitiu repensar o novo acordo ortográfico, mas os diplomatas não gostaram. Nós estamos à espera que Moçambique decida sim ou não ao Acordo Ortográfico. Se decidir que não, mais Angola, é uma oportunidade para repensar essa matéria”, disse em maio o Presidente da República. Poucos dias depois, o i noticiava o desconforto de fontes diplomáticas: as declarações sobre o Acordo Ortográfico são vistas como “desastradas”, tendo em conta o momento da CPLP, dizia o jornal.

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