Ser patrão de si próprio: será que consegue?
O mercado está saturado, por isso é preciso encontrar alternativas. Há quem consiga, e quem não. Estes empreendedores querem ser os patrões de si próprios. Mas nem sempre as coisas correm bem.
Quantas pessoas conhecemos que dizem “quero começar o meu próprio negócio” ou “quero ser o meu próprio chefe”. Não ter de prestar contas a ninguém, não ter quem defina os nossos horários por nós, poder trabalhar a partir de onde se quiser, poder fazer as nossas escolhas… são várias as vantagens. Mas também há desvantagens: a instabilidade de não se saber o futuro, de não ter uma rede de segurança, de ter de enfrentar sozinho os desafios que surjam pelo caminho. Por isso, será que toda a gente tem igual capacidade de vingar como seu próprio chefe? De fundar o seu próprio negócio e mantê-lo rentável? O ECO falou com quatro empreendedores, duas mulheres e dois homens, que tentaram a sua sorte. Três deles conseguiram, o outro não. E revelam-nos os ingredientes que levaram ao sucesso, e o que falhou quando os projetos não correram bem.
“É preciso ser humilde, reconhecer as limitações e saber começar por baixo” — Sofia
Sofia nasceu para planear casamentos. Tem a organização e disciplina necessárias para os planear inscritas, literalmente, no ADN. A mãe tinha um restaurante onde se realizavam vários eventos e o pai chegou a abrir outros espaços onde eles podiam decorrer. A partir dos 12 anos, Sofia já ajudava ambos nos vários aspetos da preparação do dia mais importante das vidas dos noivos, em especial a parte da animação infantil. Aos 16 anos, já trabalhava numa agência de planeamento de casamentos e era responsável por gerir um dos cinco espaços que ela detinha. Aos 19, fundou a sua própria agência.
A My Fancy Wedding nasceu do desejo de Sofia de ir mais além. “Nas empresas deste género, cada trabalhador está um bocadinho limitado a um certo número de funções, e os próprios serviços oferecidos são um pouco limitados. Não há personalização para cada cliente e os preços não se alteram muito porque não se atraem outros tipos de público. Por isso, e porque comecei a desenvolver uma paixão mais específica pela parte do atendimento ao cliente, pelo contacto e acompanhamento permanente aos noivos, comecei a idealizar como seria fornecer serviços mais personalizados a cada um“, esclarece Sofia.
Aos 19 anos, a trabalhar noutra agência de planeamento de eventos e a estudar em regime pós-laboral na Escola Superior de Comunicação Social, no curso de Relações Públicas e Comunicação Empresarial, recebeu o desafio de um DJ e fornecedor da empresa para a qual trabalhava de começar a My Fancy Wedding. “Ele perguntou-me se podia começar a referenciar-me a clientes estrangeiros para organizar ‘destination weddings’ e eu fiquei a pensar na ideia e decidi avançar com ela. Ele entretanto não me arranjou nenhum cliente, mas deu-me a ideia para avançar para esse nicho. Por isso saí da empresa em que estava e entretanto fui trabalhar para um hotel, onde pude desenvolver mais contacto com estrangeiros e perceber melhor algumas culturas. E depois foi avançar para a My Fancy Wedding, largar aquilo que tinha garantido e lançar-me para o desconhecido“. Foi enquanto ainda estava nesse hotel que passou também, em simultâneo, a ser consultora de organização de eventos para outra pessoa, que através da remuneração que lhe dava pelos serviços lhe permitiu começar a sua empresa.
Isso foi em Outubro de 2015. Nesses primeiros meses, organizou três casamentos. Para este ano, tem planeado um máximo de vinte. “Lembro-me de nos primeiros tempos ter dito ao meu contabilista: ‘Ok, este (primeiro) ano não vamos ter faturação, não vai mesmo acontecer. O máximo que podemos conseguir serão os sinais para os casamentos do ano que vem. Por isso não vamos preocupar-nos em iniciar já a atividade, vamos focar-nos em fazer aqui um plano bem feito“. Esses três primeiros casamentos foram grandes, de casais indianos, cada um a durar vários dias e com cerca de 300 pessoas cada. “Conseguimos logo ir para o nosso nicho de mercado, o que foi fantástico, porque com tão pouco tempo para estabelecermos a marca no estrangeiro, era quase impossível conseguirmos o que quer que fosse, mas conseguimos”, afirma Sofia, orgulhosa.
Ao longo dos anos que já tinha passado a trabalhar nas várias vertentes do planeamento de casamentos, ganhou o ‘know-how’ que lhe permite gerir hoje, aos 23 anos, a sua agência. “Cada pormenor daquilo que fui aprendendo nos sítios por onde passei é importante. Cada um me ensinou alguma coisa. É preciso ser humilde, reconhecer as limitações e saber começar por baixo. É engraçado porque muitos clientes olham para mim e devem pensar ‘Vou entregar o meu casamento a esta pessoa? Não sei quantos anos tem, mas parece muito nova’. E, no entanto, quando me ouvem explicar o que é preciso fazer, percebem que sei do que falo”.
Apesar de ter alguns clientes portugueses, tem nos estrangeiros o grosso do seu público-alvo. “Os ‘destination weddings’ são um mundo completamente à parte. Nós tentamos proporcionar uma experiência completa a quem vem de fora, tanto aos noivos como às famílias. Vamos imaginar que uma família inteira vai para Roma, por exemplo. Está lá durante cerca de três dias e tem imensas atividades, do jantar de ensaio ao casamento propriamente dito, ao brunch no dia seguinte, às atividades que se prolongam pela tarde. Nós proporcionamos tudo isso aos clientes que vêm casar a Portugal”.
E reconhece que estes eventos são um potencial por explorar para o turismo português, que ainda não lhe dá a devida atenção. “Um casamento de estrangeiros cá nunca fica abaixo dos 25 mil euros. E isso é só o casamento, tirando as refeições que são feitas nos outros dias e a estadia dos familiares e dos outros convidados, as atividades, etc. Esse é dinheiro que eles trazem, que investem cá em Portugal. Já tivemos casamentos que chegaram aos 120 mil, 170 mil euros. Quando se perceber o potencial deste nicho, vai ser um ‘boom’.
Na My Fancy Wedding trabalha-se sempre tendo por base o budget do cliente e não preços fixos que lhes apresentem, e por vezes a discrepância entre o que é idealizado pelos noivos e os recursos que têm disponíveis é flagrante. “Às vezes temos de fazer uns ajustes e ver de que forma os noivos estão dispostos a estender um pouco o budget de forma a conseguirem aquilo que querem. E o ‘simples’ é sempre muito relativo, porque às vezes os casamentos que nos parecem os mais simples acabam por ser os mais complexos e mais caros do que os noivos estão a pensar”.
Cada cliente recebe um serviço personalizado. “Não há repetições, por isso não apresento portefólio aos novos clientes quando começo a trabalhar com eles. Procuro conhecê-los, saber quem aquelas duas pessoas são enquanto casal, e criar uma experiência única e personalizada para elas”. E isso implica uma disponibilidade imensa e muito pouco tempo livro. “Como recebemos muitos noivos estrangeiros cá, mesmo antes do dia do casamento, temos de estar disponíveis para estar o tempo inteiro com eles, 100% disponíveis para os acompanhar. E temos clientes que em três a cinco meses conseguimos ter tudo planeado, e outros em que um ano sabe a pouco e precisávamos de muito mais”.
Atualmente, Sofia conta com uma equipa de quatro a cinco pessoas permanentes, além dos designers que trabalham em regime de freelancers. Mas a partir de abril e maio, quando abre a época oficial dos casamentos, juntam-se mais três ou quatro trabalhadores. Além deles, em alturas específicas do ano, colaboram estagiários com a empresa, portugueses e estrangeiros, através do programa Erasmus, que passam por todas as funções para aprenderem o máximo possível de cada parte do todo. E se tudo continuar a correr bem, o plano é expandir a My Fancy Wedding para o estrangeiro.
“Já temos o ‘não’ garantido, por isso temos de trabalhar para conseguirmos o ‘sim’” — Daniel
Daniel Demétrio tem 22 anos e é o fundador da Ideart Design, uma empresa de branding design e marketing digital. Fundou-a há menos de dois anos, a partir do zero. E é um exemplo de perseverança.
Vem de famílias com poucas capacidades económicas e confessa que sempre passou dificuldades em casa. “Nunca tivemos muito e sempre aprendi que o importante era dividir o pouco que tínhamos por todos. Houve tempos que passei melhor, outros que passei pior, mas como muitos portugueses, a nossa família passou muitas dificuldades”.
Depois de ter acabado o 12º ano, no curso técnico de Relações Públicas, Marketing e Publicidade, não sabia ao certo o que queria seguir, mas descobriu um gosto pela área e decidiu manter-se nela. “Como sempre fui muito autodidata, tive algumas aulas de Photoshop, gostei daquilo e comecei a ver tutoriais no YouTube e a aprender um pouco mais de tudo, até que chegou uma altura em que os meus professores até já me pediam para ser eu a dar as aulas aos meus colegas, porque viam que eu gostava daquilo”, recorda. E confessa que gostava de ter ido para a universidade e que foi a falta de possibilidades financeiras que o levou a desistir dos estudos e a procurar o primeiro emprego. Mas essa revelou-se uma demanda vã: “Procurei em agências de comunicação, design gráfico, marketing, vendas, um pouco de tudo. Não encontrei nada! Por isso desisti das agências e fui à procura de um trabalho nas grandes corporações que me ajudasse a sustentar lá em casa. O problema é que nem para ser “explorado” me chamavam!”.
Como não encontrou nada, decidiu pôr “mãos à obra” e criar um projeto, com um colega de escola, a Ideart. “É uma agência de design e comunicação. Criamos os logótipos das marcas, os cartões-de-visita, as peças de comunicação. Íamos fazendo uns quantos trabalhos, só para desenrascar, basicamente, para ganhar alguns trocos até encontrarmos alguma coisa mais sustentável”. Gastaram 50€ para registar a patente e o logótipo, uma opção que tomaram mesmo não sendo obrigatória, e avançaram. “Mas como ainda não conhecíamos nada, íamos apenas de porta em porta tentar arranjar clientes. E muitas vezes passavas das portas, ainda estavas a dizer bom-dia e já eles estavam a dizer que não, que não estavam interessados”. E reconhece que o facto de serem bons no design mas não na gestão e marketing, e de serem jovens e ainda não perceberem o suficiente do campo para o qual estavam a lançar-se, resultou em que não obtivessem qualquer lucro. E o colega acabou por desistir do projeto. “Eu também estive para desistir, mas como não tinha encontrado mais nada e os trocos que ia conseguindo com aquilo sempre davam para pagar alguma coisa, decidi continuar”, confessa Daniel, que em janeiro de 2015 conseguiu avançar sozinho com o projeto.
“Comecei a estudar imenso, contabilidade básica e gestão para pequenos negócios, vendas, setor comercial, marketing, design, tudo o necessário para montar uma empresa. Ainda passei uns bons tempos a estudar e fui a conferências de empreendedorismo. Quando as palestras acabavam, era sempre o primeiro a ir a palco falar com os oradores e pedir-lhes dicas. Falei com centenas de contabilistas e empresários para saber como havia de montar o meu negócio, a nível do plano estratégico e afins”.
Depois, estava na hora de começar a ligar e a arranjar os primeiros clientes. “Ouvi muitos nãos, mas ouve um amigo meu que me disse que já temos o ‘não’ garantido, por isso temos de trabalhar para conseguirmos o ‘sim’”. Esse conselho impediu-o de desistir e começou a conseguir clientes e a fazer alguns trabalhos de referência. Quando a Ideart começou a crescer e a tornar-se mais sustentável, Daniel passou a ser capaz de pagar as contas lá de casa, a ajudar os pais e a receber currículos de pessoas que queriam trabalhar consigo. A certa altura, já dividia as comissões com eles e faziam os projetos de raiz ou partes deles, a meias. Daniel acabou por ficar mais com a parte da direção criativa e a distribuição das tarefas, e os colegas com a montagem do projeto em conjunto. Ao longo do tempo, o valor monetário de cada projeto também começou a aumentar, começaram a fazer projetos melhores, e o reconhecimento também aumentou.
Ao início, o valor que pedia pelos projetos era “ridículo”: “Chegava a pedir 20 euros por projeto. 20 euros não é nada! Os designers chegam a pedir 600, 800 ou mil e tal, dois mil e tal euros por projeto, como eu já peço agora, mas nenhum pedia 20. Fui tendo uma evolução gradual. Mas o engraçado é que tinha menos trabalho na altura em que pedia menos pelos projetos do que agora que já peço valores mais altos”, confessa.
“Quando trabalhas por conta própria, os méritos são todos teus, são do teu esforço e do que lutaste para os alcançares, mas os desméritos também são todos teus. Se não consegues ganhar dinheiro suficiente não é por causa do colega, do vizinho ou do mercado que está mal. É porque não conseguiste criar um bom plano e ter a visão estratégica suficiente e ter a atitude para tomar um passo à frente e fazer as coisas. Porque podes ter um bom plano, mas se não tens a capacidade de avançar, não funciona. Tal como se não tiveres um bom plano, mas tiveres capacidade de avançar, também não funciona. São sempre precisas as duas coisas”.
Neste momento já tem o seu escritório e trabalha com alguns colegas em regime de freelance. Já vai tendo alguns projetos de referência, como o mais atual, em que está a trabalhar neste momento, para a ESinergia, uma agência regional de energias do Barreiro, Moita e Montijo.
“O meu objetivo é tornar-me a maior referência em design a nível nacional e internacional, e vou trabalhar para isso. Sei que exige trabalho, mas olhando para trás, para um chavalo como eu, novo, que nunca fez nada porque também nunca teve nada, ver o trabalho que já fiz e o que já consegui, é bom. Ouvi muitos nãos, cometi muitos erros, coisas muito estúpidas com as quais aprendi, e nunca desisti de continuar. Neste momento estou autossustentável e a minha ideia é crescer cada vez mais”.
Mas se lhe oferecessem a oportunidade de trabalhar para uma grande empresa, consideraria deixar a Ideart? “Claro que pensaria, seria um pouco tolo não pensar se a proposta fosse quase irrecusável. Porque, no final de contas, tens de fazer aquilo de que gostas, mas ter dinheiro para podermos fazer aquilo de que gostamos é essencial. As pessoas não vivem do ar, vivem de bens essenciais e precisam de ter dinheiro para os comprar. Por isso sim, acho que ponderaria, mas talvez não aceitasse. Estou tão habituado a isto, porque nunca fiz nada na vida além disto, que acho que seria capaz de ser um bom funcionário, porque sei o que é preciso fazer-se, mas talvez não aceitasse. Estou tão habituado a trabalhar por conta própria e já sou autossuficiente, por isso acho um bocado difícil conseguirem dar-me aquilo que eu já estou a receber sozinho e que ainda posso receber mais.
“Porque é que continuamos? Por amor. Por gostarmos muito daquilo que fazemos” — Sílvia
Para quem julga que o empreendedorismo não sobrevive à passagem do tempo, que trabalhar como freelancer é apenas para os jovens que ainda não encontraram um sistema mais estável, o próximo exemplo é um abre-olhos. Sílvia Carmo tem 47 anos, 26 como guia intérprete, e nunca trabalhou noutro regime que não o de freelancer.
Depois dos três anos do curso no ISLA (Instituto Superior de Línguas e Administração) e do exame final, começou à procura do primeiro emprego. Queria apresentar o país, pelos seus olhos, a quem ainda não o conhecia. E para isso, precisava de começar por ganhar uma base de contactos. “No início da carreira, ninguém nos conhece, por isso somos nós que temos de ir à procura de trabalho. O que eu fiz, e que suponho que muitas colegas tenham feito, foi ir apresentar-nos às agências, darmo-nos a conhecer. Íamos lá entregar os nossos cartões, que tinham os nossos dados e contactos e também os idiomas em que nos disponibilizávamos a trabalhar”. No seu caso, começou por traduzir para grupos em inglês, alemão e francês. Não tencionava trabalhar em português, porque o seu foco era o mercado recetivo. Isto porque “temos um mercado muito mais recetor do que emissor. Agora já há muitos portugueses que viajam, mas continuamos a ser um país maioritariamente recetivo”.
E admite que esta é uma profissão instável. “Continua a ser, cada vez menos mas ainda assim, sazonal. Nos últimos dois anos temos vivido um ‘boom’ do turismo, mas também há muito low cost que depois não pede serviço de intérprete. As pessoas tratam de tudo pela Internet, ou limitam-se a apanhar os autocarros “hop-on/hop-off” ou tuk-tuks. Ou seja, serviços que nem sempre têm muita qualidade, na verdade, porque essas pessoas, por normal, não têm formação em turismo. Esse é o nosso cavalo de batalha: nós recebemos formação superior e eles não. E é necessário que continue a haver formação e certificação dessa qualidade, e é isso que nós oferecemos“, explica, ela que, sempre que pode, vai a palestras e workshops, conferências e outros fóruns onde consiga receber mais formação.
Mas além da possível escassez de clientes, e da irregularidade do volume de trabalho, a condição legal também não oferece uma grande estabilidade. “Legalmente estamos completamente desamparados. Temos de fazer os descontos por nós na Segurança Social, trabalhamos a sistema de recibos verdes e temos obrigatoriamente de e ter seguro de acidentes no trabalho“. Porém, já foi ainda mais difícil. Antigamente, o sindicato a que os guias intérpretes pertencem, o SNATTI (Sindicato Nacional da Atividade Turística – Tradutores e Intérpretes), em concordância com a APAVT (Associação Portuguesa das Agências de Viagens e Turismo) estabelecia uma tabela de referência de preços e honorários e as agências e os guias a elas associados trabalhavam de acordo com ela. Mas hoje em dia tudo mudou: agora cada guia tem de ter a sua tabela própria, porque nem o sindicato nem a AGIC (Associação Portuguesa dos Guias-Intérpretes e Correios de Turismo, na qual os guias podem ser membros se quiserem) podem elaborar tabelas, “porque a concertação social não é permitida por lei”, explica Sílvia. “Hoje em dia há duas modalidades: as tabelas de preços dos guias intérpretes e as tabelas das agências. Depois pode-se negociar um bocadinho e chegar a acordo entre os dois”.
Mas a AGIC continua a ser uma ajuda preciosa. Funciona como um escritório onde estão colegas que fazem parte da direção e dos corpos constituintes, nos dias em que podem. Quando não podem, trabalham a partir de casa. Além de os representarem em reuniões de câmara e conselhos, e tanto a nível nacional como internacional, a AGIC também fornece aos guias uma imensidão de informação útil, cultural ou administrativa, incluindo, por exemplo, os cortes no trânsito em Lisboa quando há corridas, maratonas e outros eventos. “Precisamos dessa informação para trabalhar, porque se de repente metade de Lisboa for encerrada, nós temos autocarros para gerir e grupos para levar a certos locais e somos afetados. E não somos só nós, é um universo de todos os autocarros que circulam diariamente”, alerta Sílvia. Além disso, a AGIC também auxilia os guias a conseguirem trabalhos, por ser contactada pelo estrangeiro, por pessoas que procuram guias intérpretes, e por depois lhes passarem esses serviços.
Mas os doze meses do ano não são iguais em termos de rendimento. Abril e Maio, e depois Setembro e Outubro, significam habitualmente os picos de trabalho para os funcionários do setor do turismo. “No resto do ano, depende um pouco dos idiomas. Há variações de nacionalidades. Por exemplo, quando comecei, havia muitos franceses e alemães, e havia menos guias intérpretes em alemão. E eu, não por opção, mas por ser levada um bocadinho na onda, concentrei-me mais no alemão. Hoje em dia só trabalho em alemão e inglês. Houve um decréscimo depois, bastante grande, de turistas franceses. Neste momento há o inverso da situação, um regresso muito grande do mercado francês, também porque os mercados tradicionais para os franceses têm vindo a fechar, neste momento. Estamos a falar da Turquia, do norte de África, do Egito, que não estão interditos ao turismo mas quase, e os franceses tiveram de sair desses destinos tradicionais e voltaram-se neste momento para Portugal”.
Mas se as condições são difíceis, especialmente para quem, como Sílvia, se encontra como freelancer nesta área, por que é que continuam? “Por amor. Por gostarmos muito daquilo que fazemos. Pessoalmente, tenho muito orgulho naquilo que faço. Tenho de me provar todos os dias, porque as pessoas chegam e não me conhecem de lado nenhum, por isso vão conhecer Portugal através dos meus olhos e dos meus gostos pessoais. No fim, e embora me cinja aos factos, acaba por ser uma apresentação muito subjetiva. Há uma base racional e de factos, mas tudo o resto, é aí que fazemos a diferença entre ler dados de um livro ou ouvir um intérprete, ouvirem a sua opinião e visão, o seu gosto pessoal, seja no aconselhamento de um restaurante ou museu. É aí que eu tenho de fazer a diferença e de me provar, e por isso tenho de fazer formação contínua, que aproveito para fazer na época baixa”.
E já há muitas instituições que já perceberam a diferença que os guias intérpretes podem fazer e que por isso apostam em dar-lhes essa formação. “Chegam eles a contactar-nos, ao sindicato ou à AGIC, para fazermos essas formações”, conta Sílvia.
Para quem quer investir num futuro dentro do turismo, Sílvia deixa um conselho: “Temos de ser nós a fazer o nosso marketing. Tenho um site, por exemplo. Temos de promover os nossos serviços através das redes sociais. Depois, com o tempo, é o boca a boca, das pessoas que vêm, gostam do meu serviço, e passam para outras pessoas, ou amigos ou à agência pela qual vieram”.
Mas ser freelancer não é para todos
Como em tudo na vida, também há quem não se adeque ao regime de freelancer ou que não consiga manter-se como empreendedor. Rúben Tiago Pereira é um dos muitos exemplos.
“O empreendedorismo é uma resposta, uma fuga, da sociedade ao ócio, ao desemprego jovem e à precariedade no trabalho. Atrever-me-ia até mesmo a dizer que as pessoas não se estão a virar para o empreendedorismo, estão a ser forçadas a isso porque a alternativa, em grande parte dos casos, são trabalhos mal remunerados e sem perspetiva de carreira — o kriptonite de qualquer estudante universitário. No entanto, é claro que quem opta pelo empreendedorismo fá-lo de livre vontade porque no fim há uma remuneração encapotada, que é a de ser ‘livre no trabalho’, ‘fazer os próprios horários’, ‘ser patrão de uma empresa’. É encapotada porque não há nada de livre e de aliciante em trabalhar 15h por dia, não ter a quem delegar tarefas e ser responsável a todo o instante pela viabilidade de um projeto que pode envolver mais pessoas“.
Por isso, vê o empreendedorismo como um risco que, na sua opinião, só faz sentido tomar em determinadas situações: “No caso de se ter uma ideia (de preferência voltada para a tecnologia) que seja reconhecida como inovadora e promissora por uma quantidade alargada de pessoas e não só pelo próprio empreendedor, e ter uma carreira sólida numa determinada área, notar que existe um problema para o qual o mercado não tem resposta e empreender no sentido de colmatar essa falha”.
E ele tentou fazê-lo. “Comecei um canal no YouTube que teve um crescimento muito modesto, mas muito rápido. Graças a ele e à minha entrada para o curso de Jornalismo, que coincidiram, com 20 anos eu julguei seriamente ter tudo o que era preciso para ser um empreendedor nato: criatividade, ideias, energia, dedicação. Frequentava um curso onde tinha seminários de empreendedorismo e onde aprendia todos os dias a compreender a sociedade e suas interações; tinha um canal no YouTube que me dava exposição e a partir do qual me iniciei, pela mão de um grande amigo meu, na produção profissional de vídeo. Fazíamos aftermovies, videoclips, curtas-metragens, etc.. Começámos a ter alguns clientes particulares e até mesmo empresas. Acreditámos seriamente ter algo que nos distinguia da concorrência e, claro, comecei a criar expectativas: ‘vou fazer disto uma empresa, vou ser o meu próprio patrão, vou criar os meus próprios horários’. Esqueci-me de um pormenor: para além de não ter a mínima noção do que é criar e gerir uma empresa, não tinha experiência no meio e, mais importante, não tinha contactos. Era um puto”.
Considera que uma pessoa com 20 e tantos anos tem muito mais a ganhar “com a experiência de passar por boas empresas e absorver o seu ‘know-how’ do que com a experiência de levar adiante um projeto próprio, “que, não envolvendo outras pessoas, tem muito pouco de liderança, por exemplo”.
E encontrou esse ‘know-how’ e esse acompanhamento na Thumb Media, a única multi-channel network portuguesa no YouTube. Nela, começou a criar e a gerir conteúdos de media nas plataformas digitais, principalmente no Youtube, e percebeu que a empresa precisava realmente de pessoas como ele. “Precisam de pessoas como eu, com as minhas capacidades e características, para definir as suas estratégias de comunicação online, contar histórias, criar e gerir conteúdos próprios. Estou no paraíso. Para além de estar a fazer aquilo de que gosto e de ter horários flexíveis (ao contrário do que se apregoa), estou a aprender a um ritmo brutal com pessoas que têm carreiras exímias, estou a alargar a cada dia o meu capital social e tenho um rendimento fixo que me permite, entre outras coisas, fazer poupança e comprar o material cinematográfico que nunca tinha tido capacidade para adquirir”.
Por isso, a seu ver, o termo e o conceito criados em torno do “empreendedorismo” não são mais do que “chavões da sociedade”: “A verdade é que, se desconstruirmos o empreendedorismo, chegamos à conclusão de que ele não é nada mais, nada menos do que uma aptidão que se apoia nas várias características da personalidade do indivíduo e que resulta na capacidade de empreender, de construir. É uma característica pessoal complexa e, tal como a autoconfiança ou a capacidade para tocar ferrinhos dentro do ritmo, nem todos a têm“.
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