Tecnologia, desigualdade e… Star Trek no São Carlos
Qual o papel das tecnologias na distribuição de oportunidades e riqueza no mundo? Esta e outras questões fizeram parte dos temas da abertura do encontros da Fundação Francisco Manuel dos Santos.
Na década de 60 o mundo (ocidental!) vibrava com a série Star Trek, onde várias promessas tecnológicas para o futuro passavam diante dos olhos dos espetadores. Em 2017, tecnologias como um tradutor universal automático já existem, mas poucos sabem das suas repercussões no sistema económico mundial. No Teatro São Carlos, foi disto que se falou (e outras coisas), no encontro da Fundação Francisco Manuel dos Santos dedicado à Igualdade.
Hoje em dia, o Skype já possibilita a tradução do discurso do interlocutor à medida que fala. O Google tradutor já devolve um discurso inteligível a partir de algo dito numa língua desconhecida. Alguns vídeos no Youtube, inclusive, já possuem uma opção que dobra automaticamente aquilo que é dito para inglês. “Isto não é ficção científica, isto já funciona, mas a maior parte das pessoas não sabe que existe”, afirma Richard Baldwin, um dos conferencistas.
Num contexto de globalização, estes serviços trarão alterações ao nível, por exemplo, do mercado laboral mundial, com a contratação remota. Baldwin fala de uma arbitragem nos ordenados, isto é, com as empresas a recorrer mão-de-obra externa e assim contratar funcionários qualificados a um preço reduzido. Daqui poderá decorrer um “tsunami de talentos”, afirma. Por exemplo: Todos os anos saem 8 milhões de estudantes das universidades chinesas e trabalham por ordenados mais baixos nas mais diversas áreas.
A “vaca sagrada” que nos cega do progresso tecnológico
Para Richard Baldwin, o pensamento humano avança de forma linear ao longo do tempo. No entanto, o mesmo não acontece com o progresso da tecnologia. Esta desenha uma curva exponencial e duplica a cada dois anos. Durante décadas os avanços não eram tão significativos. A dado momento, explica o orador, a linha de desenvolvimento tecnológico superou a do pensamento humano, criando um espaço de desfasamento, de “subestimação” da própria tecnologia.
O iPhone 6, a título de exemplo, é 120 milhões de vezes mais potente que o computador enviado para a Lua no Apollo One. Já o mais recente, o iPhone 8, é 240 milhões de vezes mais potente que o computador enviado à Lua. Os avanços da tecnologia são tão rápidos que se torna impossível de os compreender.
A globalização como catalisador da desigualdade
Embora o progresso tecnológico tenha prometido uma maior igualdade por todo o mundo, a realidade vem mostrar um abalo nessas expectativas. O mundo está a passar por um momento único. Pela primeira vez, o capitalismo encontra-se praticamente sozinho no mundo, e o poder dos países europeus e norte-americanos estão a passar para a Ásia, defende Branko Milanovik, outro convidado. No entanto, as desigualdades na distribuição da riqueza mundial ainda são gritantes há séculos. Para o investigador, a distribuição da atividade económica atual é igual à do século XVI, e a maioria dos países só conseguirá acompanhar o grupo do G7 nos próximos 30 a 40 anos.
Neste sentido, “Como definir a igualdade social?”, pergunta Pierre Rosavallon. O filósofo fala de um contexto em que se deplora a desigualdade, mas ao mesmo tempo se aceitam os mecanismos que a produzem. A ideia está patente na lotaria, em que a distribuição da riqueza está assente numa questão de sorte ou azar. Outro exemplo é o desporto, que é baseado justamente na desigualdade, sob o lema “the winner takes it all”. O orador referiu combates de boxe onde se disputam prémios milionários, e que em clubes futebolísticos há jogadores que apresentam rendimentos dez vezes superiores a presidentes de empresas e ninguém contesta.
A chave está na definição de um princípio de comunalidade. Rosavallon fala, em primeiro lugar, de um comum da participação, isto é, a vivência em conjunto dos mesmos eventos, a participação cívica comum, ou mesmo a formação de um comum reflexivo. Um segundo comum tem a ver com o da intercompreensão. Citando Michelet, não devemos abster-nos de compreendermos o outro, sob a ameaça da perpetuação dos estereótipos. Para Rosavallon, conhecer o outro é importante para trabalhar a confiança, a hipótese de prever o comportamento do outro. O terceiro comum a ser refletido é o comum no sentido de partilha do mesmo espaço. A sociedade apenas se desenvolverá se a pensarmos como sendo uma sociedade de iguais que produz o comum, conclui.
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