Como funciona uma requisição civil? Três advogados de direito laboral explicam o que vai acontecer com os enfermeiros
O Governo aprovou a requisição civil para a greve dos enfermeiros. Mas como funciona este mecanismo legal? Quando pode ser usado? E o que sucede? Fomos falar com advogados de direito laboral.
O Governo aprovou a requisição civil dos enfermeiros, em greve desde o final de janeiro. Este mecanismo legal está previsto na Constituição portuguesa desde 1974 e já foi usado várias vezes para travar greves em empresas de transportes, como na CP ou TAP, ou até na greve dos funcionários judiciais.
Mas o que significa na prática, e como funciona? Ao ECO, alguns advogados explicam o que pode suceder agora.
No que consiste a requisição civil?
“A figura da requisição civil, não muitas vezes utilizada desde o seu surgimento em 1974, encontra-se regulada num diploma ainda do tempo do PREC”, conta Marta Carvalho Esteves, advogado especializada em direito do trabalho da JPAB. Remonta a novembro de 1974, tendo sido introduzida na Constituição pelo decreto-lei 637/74, durante um governo de Vasco Gonçalves.
Na prática, constitui um mecanismo que assegura “o regular funcionamento de certas atividades fundamentais, cuja paralisação momentânea ou contínua acarretaria perturbações graves da vida social, económica e até política em parte do território num setor da vida nacional ou numa fração da população“.
É uma medida de caráter excecional e de emergência a que o Governo pode recorrer, apenas em casos “particularmente graves”, para que o “regular funcionamento de serviços essenciais de interesse público ou de setores vitais da economia nacional” fique assegurado.
Tem por base a “prestação de serviços, individual ou coletiva, a cedência de bens móveis ou semoventes, a utilização temporária de quaisquer bens, os serviços públicos e as empresas públicas de economia mista ou privadas”.
Entre a lista de serviços ou empresas que podem ser objeto de requisição civil está “a prestação de cuidados hospitalares, médicos e medicamentosos”, as “indústrias essenciais à defesa nacional”, o “funcionamento do sistema de crédito”, ” exploração e serviço dos portos, aeroportos e estações de caminhos-de-ferro”. Acrescem outros mais, como a exploração de serviço de transportes, produção e distribuição de energia ou produção e transformação de alimentos de primeira necessidade.
Quando é que pode ser requerida?
Este mecanismo legal pode ser pedido em casos de urgência. Já foi usado várias vezes, nomeadamente em empresas de transportes, contra greves da TAP (três vezes), da CP, mas também uma greve dos funcionários judiciais, em 2005, por exemplo. A requisição civil foi usada em 1977 por Mário Soares contra uma greve de pilotos da TAP, em 1997 por António Guterres e em 2004 por Pedro Passos Coelho também para a transportadora aérea.
“Apenas se deve recorrer a este mecanismo quando um interesse público e nacional possa ficar comprometido em virtude da ausência e/ou incumprimento dos serviços mínimos a que uma greve obriga. De facto, e para que não se possa afirmar que o direito à greve – que está consagrado na nossa Constituição – está a ser violado em virtude da requisição civil é essencial que estejamos perante uma situação excecional e extremamente gravosa”, explica Tiago de Magalhães, advogado de direito laboral da CMS Rui Pena & Arnaut.
“No fundo, apenas se pode recorrer à requisição civil quando se verifica um verdadeiro conflito de interesses em que os daqueles que recorrem à greve poderão prejudicar – de forma quase que irreversível – os interesses daqueles outros”.
Como funciona? O que vai acontecer agora?
A partir do momento em que a decisão da requisição é publicitada, tem efeitos imediatos. Os enfermeiros terão de comparecer e retomar os seus postos. De momento, contudo, “ainda não é conhecido o âmbito da requisição civil, uma vez que apenas foi comunicada a aprovação de uma resolução de Conselho de Ministros, reconhecendo a necessidade da requisição civil aos enfermeiros em greve, e, para que a requisição se efetive é necessário que exista uma portaria do Conselho de Ministro que determine o âmbito de aplicação da mesma“, explica Pedro Antunes, coordenador do departamento laboral da CCA Ontier.
A requisição civil tem, assim, agora de ser definida por portaria e tem de indicar o seu objeto e duração, a autoridade responsável por executar a requisição e o regime de prestação de trabalho dos requisitados. “Devem-se indicar os seguintes elementos: objeto, duração, autoridade responsável pela execução da requisição e, ainda, o regime de prestação de trabalho dos requisitados”, complementa a jurista da JPAB. Este mecanismo legal não dá direito a qualquer indemnização que não seja o salário ou vencimento decorrente do contrato de trabalho ou da categoria profissional.
“A requisição civil de pessoas pode abranger todos os indivíduos maiores de 18 anos, devendo ter-se em consideração, sempre que possível, as respetivas profissões, aptidões físicas e intelectuais, a idade, o sexo e a situação familiar. Assim, e nos termos do referido diploma legal, tanto pode abranger só enfermeiros, como outros profissionais considerados adequados“, explica ainda o jurista da CMS Rui Pena & Arnaut.
"Após o cancelamento ou adiamento, na primeira “greve cirúrgica”, de cerca de oito mil cirurgias, recorrendo o Governo ao mecanismo da requisição civil, esta é uma decisão que já peca por tardia.”
Segundo a advogada, a requisição civil não pode ser considerada como uma limitação ao direito à greve pelo Governo, dado que “após o cancelamento ou adiamento, na primeira ‘greve cirúrgica’, de cerca de oito mil cirurgias, recorrendo o Governo ao mecanismo da requisição civil, esta é uma decisão que já peca por tardia”, defende, sendo que esta medida, a seu ver “não estará mais do que a assegurar o direito à saúde dos cidadãos, que tem vindo a ser afetado em consequência de uma (segunda) greve cuja legalidade é um tanto ou quanto duvidosa, a duração excessiva e os efeitos nefastos”.
E se não for respeitada?
O incumprimento da requisição civil pode ter consequências disciplinares e até criminais. “Se não for respeitado poderá levar a um procedimento disciplinar instaurado contra o faltoso ou, no limite, um processo-crime por abandono de funções”, explica Tiago de Magalhães. Assim, os trabalhadores que não compareçam ou se recusem a exercer funções podem levar com processos disciplinares e/ou, em casos mais graves, pode mesmo ser invocado o crime de abandono de funções.
Pode estar ainda em causa o crime de desobediência, como explica o advogado Pedro Antunes. “Verificando-se o incumprimento, verifica-se também a eventual sujeição às sanções disciplinares legalmente previstas e, no limite, verificados os respetivos pressupostos, pode dar lugar ao preenchimento do crime de desobediência“.
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