Qual o estado dos serviços públicos? “É esperar e desesperar”

Com o fim da legislatura, os partidos vão fazer a avaliação destes últimos quatro anos de Governo. Os serviços públicos deverão ser um dos principais tema do debate.

No rescaldo da legislatura, a Assembleia da República recebe, esta quarta-feira, o debate sobre o Estado da Nação. Perante o aumento das críticas aos serviços públicos — desde os transportes à saúde, passando ainda pela atribuição de pensões ou renovação do Cartão de Cidadão — é esperado que este seja um dos principais temas da discussão, com praticamente todos os partidos a salientar a falta de investimento nos serviços públicos como o ponto fraco da legislatura de António Costa.

O PSD considera que “nunca se desinvestiu tanto” e salienta os sinais de “degradação nos serviços públicos”, destacando os tempos de espera das cirurgias. Também o CDS-PP aponta a saúde como uma das áreas em que o país está em pior estado. Já na bancada da esquerda, o PCP admite que este Governo “devia ter ido mais longe para que a resposta aos problemas do país fosse outra”, enquanto o PEV faz questão de reforçar que o Executivo “claramente não” foi tão longe “quanto era possível e desejável”, nomeadamente na ferrovia.

Os serviços públicos tornaram-se mesmo uma espécie de parente pobre da legislatura de António Costa. E o primeiro-ministro tem consciência disso. Há cerca de um mês e meio, no discurso de abertura que fez perante a Comissão Política Nacional do PS, António Costa assumiu que há um conjunto de serviços cujo funcionamento é “deficiente” e disse que isso “não é aceitável”. O primeiro-ministro prometeu que, caso o PS volte a formar Governo na sequência das eleições legislativas de 6 de outubro, o investimento e a melhoria dos serviços públicos seriam uma das principais prioridades do Executivo.

“Temos de agir de forma a corrigir [os problemas], seja nos transportes públicos, seja no Serviço Nacional de Saúde, seja quanto à prestação de serviços básicos como a emissão de Cartões de Cidadão e passaportes”, afirmou, destacando três áreas onde as queixas dos cidadãos têm, de facto, aumentado significativamente.

Costa enumerou, desde logo, três dimensões problemáticas e a Provedora da Justiça veio acrescentar mais uma: as pensões. Afinal, qual é o estado dos serviços públicos ao nível dos transportes, Serviço Nacional de Saúde (SNS), emissão de Cartões de Cidadão e pensões?

O ministro que pediu desculpa pelos transportes

Comecemos pela teoria. “O serviço público de transportes existe para servir o povo e ajudá-lo a organizar a sua vida com previsibilidade e conforto. Para isso, o sistema ferroviário deve ser desenhado para ser robusto e precisa de funcionar com redundâncias e reservas que garantam que, mesmo quando há imprevistos, os serviços possam ser mantidos”. A frase é do ministro das Infraestruturas e da Habitação, Pedro Nuno Santos, e foi proferida durante o debate de urgência sobre as supressões nos transportes públicos urbanos e suburbanos, requerido pelo Bloco de Esquerda.

“Os portugueses confiam nos transportes públicos no dia-a-dia para irem trabalhar, para levarem os seus filhos à escola, ou simplesmente para passear (…). Sabemos bem que é nossa obrigação servi-los com regularidade, pontualidade, qualidade e conforto“, continuou o ministro.

O aumento do tempo de espera entre comboios e a utilização de comboios com apenas três carruagens têm sido algumas das queixas dos utentes do metropolitano de Lisboa.

A teoria estava certa, faltou a prática. A legislatura de António Costa deu depressa nas vistas pelo número de greves a que assistiu, e que continua a assistir. Ainda esta quarta-feira, simultaneamente ao debate sobre o Estado da Nação, os mestres da Soflusa prosseguem com uma greve que já iniciaram na segunda-feira e que afeta cerca de 30 mil pessoas.

Entre greves, aumento dos tempos de espera e supressão de carreiras — as principais queixas dos utentes dos transportes públicos –, a entrada dos novos tarifários para os passes agravou o panorama ao fazer disparar o número de passageiros. Ao mesmo tempo que a procura aumenta, a oferta não cresce. “Os passes baixaram, o que é maravilhoso, mas há contras”, disse Ana Nunes, utente dos transportes públicos, ao ECO.

Até agora, a maioria das transportadores tem simplesmente adaptado a oferta atual, mais do que a aumentar. Em junho, a Fertagus apontou que “o número de passageiros transportados, medidos através de uma contagem a um dia útil de maio, cresceu 19,2% face às contagens realizadas em 2018”. A Transtejo/Soflusa, por sua vez, disse que em abril de 2019 foi registado um aumento superior a 8,3% na procura, face ao período homólogo, enquanto o Metro verificou, no mesmo mês, um crescimento de 4,4%.

As minhas palavras vão no sentido de endereçar um pedido de desculpa às pessoas cujo dia-a-dia é afetado pelas supressões e atrasos nos comboios urbanos e suburbanos.

Pedro Nuno Santos

Ministro das Infraestruturas e da Habitação

“Há muita gente [nos transportes]”, referiu Elisabete Quaresma, também utente dos transportes públicos, acrescentando que, muitas vezes, também não são feitos os “horários como deve ser”.

O ministro das Infraestruturas e da Habitação, que ditou a teoria no debate de urgência sobre as supressões nos transportes públicos urbanos e suburbanos, depressa se apercebeu que o Governo não está a pôr nada disso em prática, afetando os portugueses que diariamente utilizam os transportes públicos. “Sabemos que em alguns casos estamos em falta”, admitiu Pedro Nuno Santos.

“As minhas palavras vão no sentido de endereçar um pedido de desculpa às pessoas cujo dia-a-dia é afetado pelas supressões e atrasos nos comboios urbanos e suburbanos”, acrescentou, admitindo que, no caso da CP, as “reservas são insuficientes” em algumas linhas, pelo que há “poucos comboios de substituição prontos a entrar quando há falhas”, bem como “material circulante envelhecido” que “precisa de paragens maiores de manutenção e de reparação”.

Serviço Nacional de Saúde “à beira da rutura”

A saúde não escapa às críticas. Entre greves de enfermeiros e de médicos, crescimento do número de utentes em lista de espera, falta de profissionais e maternidades cada vez mais debilitadas, qual é, afinal, o estado do Serviço Nacional de Saúde?

Para ter uma noção do panorama, segundo o Sindicato Independente dos Médicos (SIM), a greve nacional que aconteceu a 2 de julho registou uma adesão entre 75% e 85%, havendo unidades de saúde que chegaram mesmo aos 100%. De acordo com a RTP, (acesso livre), nos primeiros cinco meses do ano, as greves na saúde equivalem à perda de 72 mil dias de trabalho. Em igual período de 2015 foram apenas 38 mil.

Consequentemente, o número de utentes em lista de espera tem vindo a crescer. Entre 2015 e 2018, o número de doentes à espera de uma cirurgia aumentou 7%. O Ministério da Saúde diz que, ainda assim, operou mais e que, em média, um doente espera entre três a quatro meses. No entanto, em várias especialidades, a espera é três vezes superior.

Já as urgências de obstetrícia de quatro dos maiores hospitais da Grande Lisboa estiveram em risco de estar fechadas num esquema de rotatividade no verão, devido à falta de médicos, conforme noticiou o Público. Entretanto, o Governo desistiu desta solução e garantiu que haverá um reforço de pessoal.

Para o ministro das Finanças, Mário Centeno, “o SNS é melhor hoje do que em 2015”. “Não tenho nenhuma dúvida sobre isso”, disse o ministro no final de junho em entrevista à TVI. O Governo tem vindo a defender que houve um reforço no SNS, nomeadamente ao nível dos recursos humanos; no entanto as horas extraordinárias para prestar este serviço cresceram entre 2015 e 2017. Os profissionais de saúde, por sua vez, garantem que o Serviço Nacional de Saúde está à beira da rutura.

“Esperar e desesperar” pelo Cartão de Cidadão

As dificuldades enfrentadas por grande parte dos residentes em Portugal na altura da renovação do seu Cartão de Cidadão ou mesmo do passaporte têm, também, estado no centro de várias queixas dos utentes de serviços públicos, confrontados não só com longas filas, como com previsões de agendamento que chegam aos 150 dias de espera.

É que renovar este documento, ainda que possa ser uma tarefa simples em algumas regiões do país, é, também, uma autêntica dor de cabeça noutras. Em Oeiras, por exemplo, à hora da publicação deste artigo, a vaga disponível mais cedo é só em dezembro. São 176 dias de espera, incluindo sábados e domingos, em que os serviços estão fechados.

À porta dos serviços, quem não fez a marcação prévia, é caso para dizer que “espera e desespera”. E isto se conseguir a tão desejada senha. No início do mês, o ECO visitou a Loja do Cidadão das Laranjeiras e encontrou uma utente que chegou à Loja do Cidadão às 3h00 da manhã para garantir que teria uma senha quando as portas abrissem — às 8h30 — e que, mesmo assim, já tinha oito pessoas à sua frente.

Preciso do cartão de cidadão. Ontem já estive cá, mas não encontrei senhas. Fui ao Marquês de Pombal, à Fontes Pereira de Melo e não consegui. Andei o dia todo nisto. Hoje cá estou outra vez a perder mais um dia de trabalho.

Utente da Loja do Cidadão das Laranjeiras

“Preciso do cartão de cidadão. Ontem já estive cá, mas não encontrei senhas. Fui ao Marquês de Pombal, à Fontes Pereira de Melo e não consegui. Andei o dia todo nisto. Hoje cá estou outra vez a perder mais um dia de trabalho“, contou outra cidadã. E já há, também, quem já opte por trazer um banco para aguardar na fila: “Pensei: é melhor prevenir e levar o banquinho. Ainda bem que o trouxe”.

As queixas ganharam contorno de polémica depois do próprio Governo apontar o dedo aos cidadãos por irem para a porta dos serviços quando estes ainda estão fechados, “o que encerra imediatamente a entrega de senhas aquando da abertura de portas”. As declarações da secretária de Estado da Justiça, Ana Pedroso, foram, no entanto, logo corrigidas pelo Ministério da Justiça, que esclareceu que o objetivo nunca foi culpar os cidadãos pelos atrasos.

Perante as horas de esperas, as filas e a “corrida às senhas”, o Executivo de António Costa reconheceu que ainda falta cerca de meia centena de trabalhadores para normalizar o processo e os prazos de renovação do Cartão de Cidadão em Lisboa e começou a tomar medidas.

No início do mês, o Governo anunciou que vai reforçar estes serviços, com a abertura de novos espaços do cidadão no Algarve, bem como alterações no atendimento em espaços de Lisboa. Já na semana passada, aquando da apresentação do iSimplex 2019, o Executivo prometeu que, com este novo pacote de medidas de simplificação da relação entre os cidadãos e a Administração Pública, vai criar mecanismos que permitam a renovação automática do CC e que deverá estar implementado durante o segundo trimestre de 2020.

Atrasos nas pensões são o principal motivo das 650 reclamações

Não é preciso sair da Loja do Cidadão das Laranjeiras para encontrar outros dos temas sobre o qual os portugueses mais reclamam. A Provedoria de Justiça continua a receber queixas relativas à Segurança Social. Até 30 de maio deste ano foi recebido um total de 650 reclamações, um número que, na sua maioria, dirá respeito a atrasos nas pensões e não representa um decréscimo face a 2018, ano em que a Segurança Social foi o motivo de 30% das queixas apresentadas à Provedoria.

“Não há uma diminuição sensível do que se verificou no ano anterior”, admitiu a Provedora de Justiça, Maria Lúcia Amaral, no início do mês, numa audição na Comissão de Trabalho e Segurança Social, requerida pelo PSD. Ainda assim, por outro lado, a Provedora salientou que o número de atrasos tem vindo a diminuir e que “o problema começou a não ter gravidade que tinha antes”. “O número de situações que são resolvidas muito mais depressa aumentou”, acrescentou, sem adiantar números concretos.

No início do ano, o ministro do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social assumiu o compromisso de reduzir os atrasos nestas prestações sociais e, agora, considera que esse compromisso está “a ser cumprido”. Vieira da Silva garantiu que o sistema de atribuição de pensão já tem “claramente” uma capacidade de resposta superior à procura (no que diz respeito aos novos pedidos), estando a reduzir as pendências. Apesar disso, há ainda 42 mil pedidos de pensões que estão pendentes há mais de 90 dias.

Os atrasos nas pensões têm valido ao Executivo de António Costa duras críticas por parte dos vários partidos e até da Provedora de Justiça.

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