Do estado de emergência ao desconfinamento, os desentendimentos de Marcelo e Costa na pandemia
As decisões na pandemia têm sido tomadas com algum consenso entre Belém e São Bento, mas algumas questões motivaram desacordo, como foi o caso da lei do ruído ou a declaração do estado de emergência.
No que pode ser um “mal-entendido” mas que está a levantar polémica, Presidente da República e primeiro-ministro medem forças na atitude perante o desconfinamento do país. Marcelo Rebelo de Sousa não quer voltar atrás no levantamento das restrições, mas António Costa reitera que ninguém pode dar essa garantia. Não é a primeira vez que surge um desentendimento entre os dois durante a pandemia. Temas como o estado de emergência e avisos sobre os privados já causaram tensão entre Belém e São Bento.
Apesar de se terem esforçado ao longo da crise da Covid-19 para apresentarem uma frente unificada, surgiram alguns momentos de desacordo. Começou logo com a declaração do estado de emergência, em março do ano passado, quando Marcelo defendia que este regime devia avançar, mas Costa resistia a aplicar as restrições às liberdades e garantias.
Quando avança o estado de emergência?
O primeiro-ministro sublinhava que, antes da emergência, ainda podia “ser decretado o estado de calamidade”, defendendo que não se podiam “gastar as munições todas imediatamente”. Tudo apontava para que o Presidente considerava que o estado de emergência podia avançar, mas queria consenso, apontando que as medidas seriam tomadas “com os órgãos de soberania todos juntos”.
Com o evoluir da situação, Marcelo acabou por convocar uma reunião do Conselho de Estado, para analisar se era ou não necessário decretar o estado de emergência. O Governo sinalizou também que não se oporia à medida, e o estado de exceção avançou, recebendo também “luz verde” do Parlamento.
Governo proíbe, Marcelo diz que é recomendação
Mais à frente, o estado de emergência (ou a falta dele) voltou a causar discórdia. À medida que Portugal registava uma segunda vaga da pandemia, o Governo decretava restrições para o fim de semana do feriado de Todos os Santos, anunciando a proibição das pessoas circularem entre concelhos desde a meia noite de dia 30 até à meia noite de dia 3 de novembro.
Com as medidas surgiram dúvidas sobre a legitimidade legal para decretar tais restrições, e o Presidente da República sinalizou concordar com os pontos levantados por vários constitucionalistas. Marcelo reiterou que a medida “está a ser aplicada com uma tolerância muito grande, o que significa que é quase uma recomendação agravada, mais do que uma imposição”.
A questão prendia-se com o quadro legal para decretar tais medidas, já que sem decretar o estado de emergência alguns constitucionalistas consideraram que a restrição “roça a inconstitucionalidade”. Depois desta discussão, acabou por regressar o estado de emergência no país, apesar de “mais soft“, como sinalizava na altura Marcelo.
Acordo com privados antes de requisição civil
Nessa altura, na segunda vaga, quando a situação epidemiológica começou a ficar mais grave no país e a colocar pressão sobre o Serviço Nacional de Saúde, começou a surgir o debate sobre a requisição civil dos operadores de saúde do setor privado. Isto já que o regresso do estado de emergência permitia também, no quadro jurídico, esta opção.
Mas perante essa possibilidade, Marcelo Rebelo de Sousa apelava a que se tentasse primeiro acordos com os privados antes de avançar para a requisição civil. No decreto presidencial que declara o estado de emergência, acabou por ficar estabelecido que se devia recorrer preferencialmente a acordos.
“Podem ser utilizados pelas autoridades públicas competentes, preferencialmente por acordo, os recursos, meios e estabelecimentos de prestação de cuidados de saúde integrados nos setores privado, social e cooperativo, mediante justa compensação, em função do necessário para assegurar o tratamento de doentes com Covid-19 ou a manutenção da atividade assistencial relativamente a outras patologias”, lia-se, no decreto.
De recordar que o Executivo já tinha chocado com o Presidente no que diz respeito aos privados na Saúde, com a possibilidade de um veto de Marcelo à lei que praticamente ditava o fim das parcerias público-privadas no setor a surgir em 2019.
Presidente “proibiu Governo de proibir””
O decreto do Presidente da República que determinava o estado de emergência era um documento onde Marcelo aproveitava para colocar algumas das medidas que considerava que podiam ser aplicadas. Dependendo das formulações, o Governo podia decidir se aplicava ou não, ou tinha mesmo de seguir.
Uma das questões que o Governo teve de acatar foi a venda dos livros, no segundo confinamento, numa altura em que os supermercados e hipermercados estavam proibidos de vender alguns bens não essenciais, por forma a não fazer concorrência desleal às lojas que tinham de estar fechadas.
O decreto passou a ditar que era possível interditar os espaços que estavam abertos de vender “bens tipicamente comercializados” em estabelecimentos forçados a encerrar, “com exclusão designadamente de livros e materiais escolares, que devem continuar disponíveis para estudantes e cidadãos em geral”.
Quando questionado sobre a medida, António Costa confirmou que tal iria acontecer, dizendo: “o Sr. Presidente da República proibiu-nos de proibir” a venda de livros.
Calendário para quando?
Por outro lado, alguns elementos que Marcelo inseriu no decreto presidencial não foram, pelo menos imediatamente, seguidos pelo Executivo. Um dos casos foi a existência de um planeamento do desconfinamento, em particular das escolas. Isto em fevereiro, altura em que vigorava um confinamento geral no país.
O Presidente da República destacou nos decretos a importância de planear “por fases” o futuro desconfinamento, “com base nas recomendações dos peritos e em dados objetivos, como a matriz de risco, com mais testes e mais rastreio” para que este seja “bem-sucedido”.
Em específico, o decreto volta a referir que, relativamente às escolas, “deverá ser definido um plano faseado de reabertura com base em critérios objetivos e respeitando os desígnios de saúde pública”. Mas, questionado pelos jornalistas, Costa dizia que era prematuro falar deste assunto. O Governo acabou depois por definir uma data para apresentar o plano para as escolas.
Marcelo pede menos ruído, Costa faz ouvidos moucos
Outro elemento que o Presidente insistiu e insistiu mas acabou por não receber a concordância do Governo foi a limitação do ruído durante os períodos em que as pessoas estavam em teletrabalho. Em fevereiro, Marcelo incluiu no decreto que “podem ser determinados níveis de ruído mais reduzidos em decibéis ou em certos períodos horários, nos edifícios habitacionais, de modo a não perturbar os trabalhadores em teletrabalho”.
O Governo não respondeu e, no decreto seguinte, Marcelo Rebelo de Sousa voltou a insistir na possibilidade de serem definidos níveis de ruído mais reduzidos em certos horários para não perturbar quem está a trabalhar em casa. Porém, acrescentou que esta alteração é feita “por decreto-lei do Governo”, o que não constava do anterior decreto.
A possibilidade continuou a aparecer nos decretos seguintes, prolongando-se por mais de um mês, mas o Executivo nunca chegou a definir limites aos níveis de ruído nos prédios.
Passo atrás no desconfinamento é possibilidade?
Agora, voltou a surgir um desacordo entre Belém e São Bento sobre o desconfinamento. Tudo começou quando Marcelo assegurou que “naquilo que depender do Presidente da República não se volta atrás” no processo de levantamento de medidas restritivas devido à Covid-19, este domingo.
Em reação, Costa apontou que “ninguém pode garantir que não se volta atrás no desconfinamento”. Se alguém pode garantir [que não se volta atrás no desconfinamento]? Não, creio que nem o senhor Presidente da República seguramente o pode fazer, nem o fez”, sublinhou o primeiro-ministro, quando confrontado com as declarações de Marcelo.
Marcelo não gostou de ouvir Costa a contrariar a sua posição e recordou que, “por definição, o Presidente nunca é desautorizado pelo primeiro-ministro”. “Quem nomeia o primeiro-ministro é o Presidente, não é o primeiro-ministro que nomeia o Presidente”, respondeu Marcelo, a partir de Budapeste.
Perante o escalar desta intercalação, Costa desdramatizou, apontando que “não há conflito nenhum, como nunca tem havido”. “Nem sempre temos de pensar o mesmo, mas nunca houve ação desarticulada no combate à pandemia” declarou o primeiro-ministro. António Costa garantiu, esta terça-feira, quando questionado sobre o assunto, que “só pode haver” um mal-entendido.
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