“A Europa está a ficar para trás, entretida com coisas que estão na linha do umbigo”
Bernardo Perloiro já passou pelo Brasil, China e Médio Oriente, sempre em lugares de topo. Fala do futuro do setor do retalho e do que falta à Europa e a Portugal para serem mais competitivos.
2 de dezembro de 1971. É o dia em que Bernardo Perloiro nasceu, em Lisboa. É também a data de constituição dos Emirados Árabes Unidos, onde trabalha desde fevereiro, no Dubai. Dizem-lhe os colegas que a coincidência ainda o vai colocar na lista de convidados do xeique Mohammed bin Rashid Al Maktoum para a cerimónia que assinalará a independência do império britânico e os 50 anos do nascimento do país.
A transferência do Walmart China, onde o futuro do retalho é já o presente (já lá vamos), para o Majid Al Futtaim (MAF) é a mais recente mudança na carreira do chief operating officer (COO) do conglomerado emiradense, que já passou também pelo Brasil e por setores tão diferentes como a logística e as telecomunicações, onde lançou o primeiro operador móvel virtual.
Tudo começou onde está agora: na grande distribuição, pela mão da Jerónimo Martins. Conta que esteve para ir para Medicina, como o avô materno, mas acabou a tirar Engenharia Zootécnica na Universidade de Évora, no Alentejo, região onde a família tem uma exploração agrícola. Foi nessa propriedade, na Amareleja, que com um dos seis irmãos lançou um negócio de passas de uva Dona Maria que, diz, teve grande recetividade no mercado. Um dos compradores era o… Pingo Doce.
De fornecedor passou, em 1997, a colaborador. Entrou num programa de management trainees da Jerónimo Martins e colocaram-no na operação logística. “Entrar pelo supply chain foi uma escola muito importante porque é o backstage de tudo”, lembra o gestor, que mistura frequentemente o português com o inglês. “Percebe-se as necessidades dos clientes, o serviço que se presta nas lojas, mas também a relação com os fornecedores, com a indústria”.
Acabou por passar dos bastidores para o palco, a operação de loja. Chegou a diretor de operações do Pingo Doce para o Sul e à comissão executiva. Ainda esteve na comissão executiva do Recheio até que em 2002 trocou o retalho pela logística e a Jerónimo Martins pela direção de operações da Chronopost em Portugal.
"A transformação dos CTT foi quase como ensinar uma avó a andar de patins em linha.”
Da multinacional francesa saltou para os CTT, para ajudar a preparar a empresa para a privatização. “Foi quase como ensinar uma avó a andar de patins em linha”, assinala, recordando uma transformação contestada, mas que considera um caso de estudo. Foi diretor de distribuição dos Correios, onde liderou uma equipa de 14 mil pessoas, depois da área comercial e em setembro de 2007 é escolhido para liderar o negócio de telecomunicações, onde lançou o primeiro operador móvel virtual, em parceria com a Portugal Telecom, sob a marca Phone-ix. A carreira nas telecomunicações continuou na Cabovisão, como diretor executivo, saindo três anos e meio depois quando o acionista canadiano vendeu o negócio à Altice.
Rumo ao Walmart no Brasil
“Foi nessa altura que surgiu a oportunidade de uma expatriação com a família para o Brasil”, conta Bernardo Perloiro. “Para nós era importante uma experiência internacional como família, dar oportunidade aos meus três filhos de ter essa experiência e exposição a culturas diferentes”. Do ponto de vista profissional, interessava-lhe “a escala e autonomia, muito diferente de Portugal”. Esteve quatro anos e meio no Walmart Brasil, a terceira maior cadeira de retalho no país, onde chegou a acumular os cargos de COO e chief marketing officer (CMO).
"O interessante foi reconhecer na cultura brasileira uma capacidade de ser feliz na adversidade.”
A cultura brasileira deixou marcas, pelo contraste com a portuguesa ou mesmo europeia. “O interessante foi reconhecer na cultura brasileira uma capacidade de ser feliz na adversidade. Tem uma vocação para a felicidade que nós em Portugal e na Europa não temos tanto”, sustenta.
A aventura brasileira terminou com a venda da operação pela Walmart, com o gigante norte-americano a focar-se em geografias de maior crescimento. É assim que Bernardo Perloiro e a família se mudam para a China, onde assume, mais uma vez, o cargo de COO. Foi, além de uma viagem espacial, uma incursão pelo futuro. “Do ponto de vista profissional, neste setor, e arrisco-me a dizer em todos os setores praticamente, é viajar ao futuro e ser exposto a um avanço em todos os domínios. O expoente máximo é a incorporação de tecnologia pelas empresas, mas também a adoção pelos clientes”.
Viagem ao futuro
O gestor dá como o exemplo o WeChat, da Tencent, usado por 1,2 biliões dos 1,4 biliões de chineses, que permite gerir quase todo os aspetos da vida diária, desde pagamentos e compras online a comunicações e transferências de dinheiro. Tudo com um grande nível de personalização. “É um mercado com uma regulação diferente, em que a segurança se sobrepõe à privacidade e à liberdade”. “Nós sabemos quem é a pessoa, quando fez a transação, o que é que adquiriu, que preferência é que tem e pode-se costumizar os serviços de forma diferente”.
Bernardo Perloiro desfia números, que falam por si. Sete em cada dez clientes fazem self chekout ou scan and go no telemóvel. Mais de 40% já paga por reconhecimento facial. Mais de um quinto das transações no retalho alimentar já são online e a internet já representa mais de metade de tudo o que se vende. “A escala, a incorporação de tecnologia e a adoção digital são uma realidade em que a China está dez anos à frente, se não for mais”.
Para mim, o grande perigo é quão pouco despertos nós estamos, no resto do mundo, para aquilo que já hoje é uma realidade na China. Não é futurologia, é uma coisa que está a acontecer.
Uma tendência que está a crescer são as compras online em comunidade. “Há uma sugestão e uma comunicação no momento da compra com a comunidade dos amigos, dos conhecidos, dos familiares, que fazem recomendações e discutem online antes da pessoa fazer a compra. Isto é uma tendência brutal e revoluciona a forma como fazemos comércio.”
“Para mim, o grande perigo é quão pouco despertos nós estamos, no resto do mundo, para aquilo que já hoje é uma realidade na China. Não é futurologia, é uma coisa que está a acontecer as we speak. Faz-se na China e faz-se em grande escala”.
A Europa está a ficar para trás? “Sem dúvida. A Europa está entretida com coisas muito importantes mas que estão na linha do umbigo, do seu próprio interior, que são importantes seguramente, mas que estão ligadas ao Estado social e aos extremismos, e muito pouco aberta para fora, ao contrário do que foi a história da Europa, praticamente todos os séculos até aos últimos 200 anos. E por isso está a ficar para trás, comparativamente com as outras grandes geografias e as outras grandes potências”.
Portugal precisa de vantagens competitivas
Uma análise crítica a que Portugal não escapa. Olha para o país “com preocupação, pelo empobrecimento e endividamento crónicos”. E pela “dificuldade em alinhar desígnios aglutinadores a longo prazo, que tragam vantagens competitivas no mercado global”. O principal? A educação e o desenvolvimento de competências, que “preparem o país para a transformação digital e a transição energética”.
Depois é preciso criar melhores condições para atrair investimento. “É preciso um enquadramento moderno para as leis do trabalho – não estou a advogar um ataque a direitos e conquistas – que seja propício ao desenvolvimento dos negócios e uma fiscalidade justa e previsível, que não seja estranguladora do investimento e do reinvestimento”, defende. Ainda assim, diz-se otimista. “Não há aqui uma visão catastrofista, mas há uma preocupação grande e uma preocupação crescente.”
E depois dos Emirados?
Foi em fevereiro deste ano que Bernardo Perloiro foi convidado a abraçar outro desafio, como COO do Majid Al Futtaim (MAF), que tem negócios em 18 países e a ambição de duplicar o número nos próximos cinco anos, na Ásia e em África. O retalho é principal atividade do MAF, operando como franchisado do Carrefour, a que se soma o desenvolvimento e gestão de centros comerciais e espaços de entretenimento e uma área de investimentos financeiros.
Não arrisca dizer onde a carreira o vai levar a seguir, mas tem a certeza de onde vai terminá-la: em Portugal. “Não há nada que bata o azul do céu de Lisboa ou de Portugal, nem a língua, nem a gastronomia, nem as relações familiares”, garante. Também não tem dúvidas sobre as qualidades de trabalho dos portugueses: “A nossa capacidade de mobilização de pessoas e recursos é incomparável e isso destaca-nos como os melhores dentro dos melhores, pelas melhores razões”.
O Eco dá-lhe a conhecer portugueses que construíram carreiras de sucesso no estrangeiro e ocupam hoje lugares de destaque. Saiba como veem a evolução do seu setor, o que pensam do país onde trabalham e como olham para Portugal. Todas as semanas, à sexta-feira.
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