“As mulheres também percebem de computadores”. E estas abrem o caminho para mais mulheres na tecnologia
Ter exemplos de outras mulheres com carreiras nas tech pode ser crucial para a escolha de outras mulheres. Educar, eliminar preconceitos e sair da zona de conforto é fundamental.
“Desde que comecei a trabalhar na indústria que ouço falar no termo ‘Women in Tech’, as mulheres que inspiram, motivam e abrem o caminho para mais mulheres se sentirem empoderadas numa área maioritariamente masculina. Automaticamente ganhamos esse título quando começamos a trabalhar numa empresa tech, mas o que é que fazemos com ele?”, questiona-se Andreia Tulcidás, community engagement manager na OutSystems.
Há quase três anos no unicórnio de ADN português e com uma passagem pela Microsoft, Andreia Tulcidás foi distinguida pela comunidade Portuguese Women in Tech com o prémio de “Community Leader by Sky Technology Centre – Portugal”. É uma das 14 mulheres premiadas pela quarta edição dos PWIT Awards. Todas elas trabalham em tecnologia, ainda num meio maioritariamente masculino, mas não consideram que seja um meio solitário para as mulheres. E, se alguma vez foi, acreditam que isso está a mudar. Trata-se de um setor para pessoas.
Para Andreia Tulcidás receber esta distinção é algo que a deixa “extremamente orgulhosa”. “Significa que estou a ter um impacto positivo no ecossistema, que estou a contribuir para algo maior do que eu, e que posso vir a ser um exemplo para alguém.”
E é precisamente de ter mais exemplos que se trata. As mulheres já eram – e continuam a ser – uma minoria no ecossistema das tech. Só há uma coisa a fazer: “dar o exemplo”. Dar exposição às profissionais que trabalham no setor, para que sirvam de referência para quem está ou pensa entrar nas tech.
“Quanto mais propagarmos que as mulheres se vão sentir em desvantagem ou em minoria em tech, menos avançamos com a normalização de efetivamente termos mulheres em tech. A coisa mais importante que temos de fazer é continuar a dar o exemplo, é inspirar as novas gerações, mostrando que é banal estar em tech e é como outro trabalho qualquer”, refere Andreia Tulcidás.
“Temos de ensinar que ‘as mulheres também percebem de computadores’ e que ‘não é só coisa de homem’, e desmistificar que temos de ter um background técnico para trabalhar em tecnologia. É mostrar como fazer, em vez de forçar a mudança”, afirma em conversa com a Pessoas.
Se há algum tempo se falava em homens e mulheres em tecnologia, cada vez mais falamos em pessoas na tecnologia.
Mónica Cerquido, optical developer na Bosch Portugal, tem um olhar otimista. Considera que o paradigma está, finalmente, a mudar e começa a ser normal as mulheres estarem no mundo tecnológico a criarem carreira. “Se há algum tempo se falava em homens e mulheres em tecnologia, cada vez mais falamos em pessoas na tecnologia”, diz a vencedora categoria de “Impact inTechnology” dos PWIT Awards.
Apesar de admitir que a pandemia possa ter condicionado uma “pequena parte a arriscar num meio tecnológico”, Mónica Cerquido considera que a pouca diversidade de género passa, sobretudo, por estigmas do passado. “Hoje, vemos já mulheres como leaders de grandes empresas no setor tecnológico, o que faz com que todos estes estigmas se vão perdendo. E é essa a mensagem que todos devemos querer passar. Mostrar que há mulheres aqui neste mundo tech, e dar exemplos aos mais novos que é normal mulheres e homens trabalharem juntos no desenvolvimento e na implementação de novas tecnológicas, com igual capacidade. Que não há mundos de homens e mulheres. Há apenas mundo, onde homens e mulheres coabitam em conjunto no desenvolvimento tecnológico.”
Educar, arriscar e sair da zona de conforto
Educar miúdos e graúdos, bem como dar exemplos de mulheres com carreiras nas tech, é fundamental para conseguir uma verdadeira diversidade de género nesta indústria. Para Paula Mateus, head of technology finance transformation na Deloitte e a vencedora da categoria “Digital Tansformation Lead”, a questão começa, desde logo, na escolha dos cursos académicos e prolonga-se na retenção das mulheres que optam por carreiras tecnológicas.
“Há pouco tempo apresentaram-me algumas estatísticas, e referiam-me que, desde 2011, cerca de 60% das saídas de alunos das faculdades são mulheres, sendo que destas, apenas 20% saem de cursos mais tecnológicos. Há claramente um trabalho a fazer na atração de mulheres para cursos tecnológicos, demonstrando-lhes o potencial da área, do crescimento e da valorização profissional que podem ter”, diz.
Já no que se refere às mulheres que prosseguem realmente uma carreira tecnológica, Paula Mateus diz que os dados mostram que estas acabam por enveredar por outra via alguns anos depois, o que mostra a dificuldades das empresas de reter talento feminino. Porquê? A resposta está, sobretudo, no equilíbrio entre vida profissional e vida familiar. “É preciso continuar a demonstrar que o equilíbrio pessoal é possível e que ter ambição é algo positivo, que inspira outros (quer sejam mulheres ou homens).”
A vencedora do prémio na categoria de “Software Developer”, Ana Silvério, team leader na Deloitte, considera que o trabalho à distância pode, no entanto, vir a favorecer este fator. “Na minha perspetiva trabalhar em tecnologia tornou-se mais apelativo face à flexibilidade que o trabalho remoto proporcionou. Espero que isso seja evidente para todas as mulheres que queiram ingressar no mundo tecnológico”, refere.
E, para aquelas mulheres que estão indecisas, este é o conselho de Mónica Cerquido: “arriscar, fugir da zona de conforto e ir à descoberta da tecnologia”. “Ignorarem, caso sintam, os estigmas impostos. As mulheres que estão indecisas se devem ou não seguir uma carreira tecnológica, eu convido-as a virem. E virem sem qualquer medo ou preconceito, uma vez que todos temos o nosso lugar neste mundo. Tenho uma experiencia feliz do que é trabalhar neste mundo, e espero que mais mulheres no futuro o possam sentir também”, acrescenta a optical developer na Bosch Portugal.
Carolina Almeida Cruz, fundadora da C-More, foi a vencedora da categoria “Female Activist focus on sustainability and/or climate emergency”, uma das novas categorias desta edição dos prémios. A consultora C-More quer ajudar as empresas a tornarem-se mais sustentáveis, e isso implica a diversidade de género e igualdade de oportunidades. Para a profissional, a resposta está na “mudança de mindset“.
Nós, mulheres, temos de ser mais ousadas, temos de assumir quando sabemos e o que aprendemos quando falhámos.
“Precisamos de criar as condições para que as mulheres sejam capacitadas na área tech e de aumentar a sua confiança no mercado de trabalho. Nós, mulheres, temos de ser mais ousadas, temos de assumir quando sabemos e o que aprendemos quando falhámos. Por muito que continuemos a afirmar que existem condições e incentivos, temos de combater o estigma de que a tecnologia é um caminho profissional tão válido, para homens como para mulheres (e pessoas não binárias). O género, em pleno séc. XXI, não pode continuar a ser um argumento discriminatório”, defende.
Cândida Jesus, senior consultant na Deloitte Digital, partilha da mesma opinião e fala também de uma mudança de mentalidades. “Arriscar ainda é, infelizmente, uma característica muito masculina. Costuma dizer-se que é importante falhar depressa, porque quanto mais cedo falharmos, mais depressa percebemos as causas desse falhanço e, consequentemente, mais depressa podemos fazer alterações e tentar coisas diferentes para chegarmos ao sucesso”, diz, salientando que “é importante que as mulheres interiorizem que têm direito a errar e a falhar”.
Por outro lado, a profissional — que venceu o prémio de “Product Manager” — acredita que é também preciso desmistificar a tecnologia. “Se falarmos de IT, é importante rejeitar a figura do programador-hacker, do programador-bicho que está fechado numa cave escura sozinho com uma lata de refrigerante e um pacote de batatas fritas a tentar aceder à base de dados do FBI. Programar é um trabalho de equipa. Nenhum homem (ou mulher) é uma ilha e nenhum software deve ser pensado e escrito por uma só pessoa”, defende.
Se falarmos de IT, é importante rejeitar a figura do programador-hacker, do programador-bicho que está fechado numa cave escura sozinho com uma lata de refrigerante e um pacote de batatas-fritas a tentar aceder à base de dados do FBI.
Joana Pinto, que venceu na categoria de “Founder/Co-founder” por ter cofundado a Clynx, onde assume também o cargo de CEO, defende considera que é fundamental contrariar estas construções da sociedade para mitigá-las. “É necessário um esforço sistemático, e deve incidir particularmente nas fases iniciais do desenvolvimento intelectual e pessoal dos jovens.”
“Esse esforço deve expandir horizontes e apresentar iniciativas que permitam e valorizem, de forma isenta, o contacto com uma gama ampla de escolhas profissionais, bem como capacitar skills como o espírito crítico e a resolução de problemas, de forma a fomentar a edificação das vocações de qualquer pessoa independentemente do seu género”, acrescenta a cofundadora e CEO da Clynx.
Já Mariana Santos Silva, senior manager na Deloitte, faz questão de reforçar o papel dos homens: “há ainda a convicção de que a tecnologia é um mundo homens, mas, se os próprios homens não apoiarem os sonhos das suas filhas, não vamos conseguir com que as tech sejam um mundo de homens e mulheres”. Para a vencedora do prémio da comunidade Portuguese Women in Tech na categoria de “Data & Analytics Expert”, apoiar e incentivar, desde cedo, as crianças e jovens a perseguirem os seus sonhos é fundamental.
“A tecnologia está cada vez mais presente no mundo das crianças, e é nossa obrigação incentivar quem gosta de tecnologia a perseguir os seus sonhos, independentemente de ser rapaz ou rapariga. É natural que os mais jovens, quando têm de fazer uma escolha que diz respeito à carreira profissional a seguir, procurem o reconhecimento e apoio dos seus pares e da sua família. Se continuarmos a incentivar os rapazes a seguir carreiras tecnológicas e as raparigas a seguir outra tipologia de carreiras, as diferenças irão continuar a acentuar-se, o que prejudica todos os setores de atividade.”
A equidade do género, por sua vez, tem o mérito de “tornar qualquer setor mais rico em criatividade e produtividade” e, ao mesmo tempo, “elevar o melhor de cada género”.
Pandemia, uma dupla visão
A pandemia da Covid-19 trouxe boas e más notícias para as mulheres. Por um lado, acabou por sobrecarregar ainda mais o seu dia-a-dia. As mulheres tiveram de desdobrar-se nas várias atividades e lidar com pouco espaço físico e mental, provocando um aumento nos níveis de stress e ansiedade. Mas, por outro lado, há quem defenda que acabou por reforçar a importância da tecnologia em muitas vertentes, contribuindo para a questão da igualdade de oportunidades entre homens e mulheres no setor.
“O crescimento que verificámos neste último ano foi muito acelerado, demorou-se anos a dar alguns passos e no último ano não houve como contorná-los. Deram-se passos gigantes na utilização das novas tecnologias. Existem inclusive estudos que demonstram que as empresas com maior aposta na tecnologia foram as que mais cresceram durante a pandemia e que os perfis de tecnologia foram também dos mais procurados. A procura por pessoas com competência e skills de tecnologia é enorme e o género não tem qualquer relevância na decisão“, acredita Paula Mateus.
Também da Deloitte, Filipa Beleza, customer experience manager, prefere olhar para o lado mais otimista. Distinguida na categoria de “Marketing & Sales Expert”, a profissional acredita que a pandemia tem contribuído para que muitas jovens mulheres, aquando da escolha do seu curso e caminho profissional, equacionem as áreas digitais e tecnológicas de uma forma cada vez mais natural.
“Não creio que a pandemia será, por si só, um catalisador da igualdade de género no mundo tech, mas penso que está a dar um boost interessante e significativo, principalmente às gerações mais novas. E o futuro depende disso mesmo”, afirma.
Cândida Jesus foca-se no aumento do teletrabalho e na implementação deste modelo de trabalho de uma forma mais definitiva, como algumas empresas já decidiram. Vê com algum receio as mudanças significativas e duradouras na sociedade a que isso pode levar.
“Pode aumentar a contribuição dos homens para o cuidados dos filhos e tarefas domésticas, ou pode representar um fardo ainda maior para as mulheres, que podem vir a ter mais dificuldades em conciliar trabalho remunerado e obrigações familiares”, considera a vencedora do prémio na categoria de “Product Manager”. E alerta: “Neste último cenário, corremos o risco de mais mulheres deixarem os seus empregos para se dedicarem à família, poderem ser despedidas, sofrerem de burnout ou depressões. É crucial precaver e combater este último cenário e não deixar que seja um dos desfechos da pandemia”.
Também a cofundadora e CEO da Clynx acredita que se tem vindo a gerar um conjunto de movimento e dinâmicas que, quando da entrada numa fase pós-pandémica, se irão “maturar de forma positiva na sociedade e originar, de forma mais rápida, melhoria”. Mas, por enquanto, é da opinião que “a imposição de confinamento e isolamento na pandemia levou a um fecho do contacto orgânico entre a sociedade, o que não contribui, e provavelmente mitiga, o caminho de evolução na desconstrução dos preconceitos de género que ainda existem”.
“Os preconceitos de género são caracterizados, à semelhança de outros, pela manutenção de ideias que vão passando entre gerações sem necessitarem de ser reconfirmados, conseguindo-o apenas pela falta de contacto com outras realidades ou exemplos que os contrariem”, acrescenta.
A pandemia da Covid-19 foi “catastrófica” para as mulheres. a vários níveis. (…) Na indústria, agravou-se a invisibilidade das mulheres e o gender gap nas oportunidades, carga laboral, nos salários, e nas promoções.
Apesar dos prós e contras, o balanço geral do projeto As Raparigas do Código, que levou para casa o prémio de “Best Digital Inclusion Project started by a Women”, considera que a pandemia da Covid-19 foi, e continua a ser, “catastrófica” para as mulheres, a vários níveis. A fundadora Miriam Santos fala, a nível geral, no elevado número de mulheres em empregos na área da saúde e, focando-se no setor tecnológico, no agravamento do desgaste físico e mental.
“Na indústria, agravou-se a invisibilidade das mulheres e o gender gap nas oportunidades, carga laboral, nos salários, e nas promoções. Na investigação e docência, a sobrecarga fez-se sentir sobretudo na produção científica. Para não mencionar o agravamento da violência doméstica, desemprego e precariedade”, refere.
No entanto, Miriam Santos não deixa de salientar o papel da tecnologia no último ano e meio, dominando quase todas as vertentes da nossa vida, desde a forma como trabalhamos até à maneira como nos relacionamos. “Foi uma constatação coletiva de que o mundo físico já se fundiu com o digital e que temos de decidir entre participar na revolução ou ficar para trás.”
“Para muitas jovens, foi o primeiro contacto com a tecnologia enquanto ferramenta de trabalho, em vez de social. Para muitas mulheres, o derradeiro empurrão para investirem em programas de capacitação digital ou requalificação profissional para o setor das TI”, diz, acrescentando que o projeto sentiu um maior interesse em desenvolver as competências digitais por parte de jovens de todo o país, e de várias áreas de atividade. “Não duvidem, ainda há esperança de vermos o reverso da medalha em breve. Mas é preciso apoiar quem se dispõe a aceitar o desafio”, finaliza.
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