Aumentar 20% os salários? Conjuntura e Governo não ajudam, dizem empresários
Economistas e empresários dizem que meta de António Costa é demasiado vaga e omissa naquilo que é o papel do Estado, mas todos concordam que é preciso aumentar os salários.
O apelo foi lançado às empresas pelo primeiro-ministro este fim de semana: um aumento de 20% do salário médio ao longo dos próximos anos. Os economistas dizem que a meta é demasiado vaga e tendo em conta a inflação pode ser pouco significativa. Os empresários, embora concordem com o objetivo, sublinham a incerteza do contexto atual e defendem que o Governo também tem de fazer a sua parte.
O objetivo de aumentar o peso dos salários de 45% para 48% do PIB até ao final da legislatura, igualando o rácio à média da União Europeia, já fazia parte do programa eleitoral do Partido Socialista. Este sábado, perante uma enorme plateia de jovens que participavam na sessão de abertura do Encontro Nacional de Associações Juvenis, António Costa convocou a sociedade, o Estado e as empresas para ajudarem a atingir aquela meta, que “implica um aumento de 20% no salário médio do nosso país”. Em 2021, a remuneração bruta mensal média por trabalhador foi de 1.361 euros, aumentando 3,4% em relação ao ano anterior.
Os economistas consideram o propósito demasiado vago. “Não percebo como se pode falar de salário médio. Se tivesse preparado bem a intervenção, teria falado de salário mediano [valor que fica no meio do conjunto de salários]. Fazer essa referência sem um plano geral que inclua o vencimento dos funcionários públicos e as pensões é um discurso coxo e pouco sustentado”, reage Ricardo Cabral, economista e professor no ISEG. “Não me parece credível. É espuma dos dias, mais do que uma política pública”, acrescenta.
Luís Aguiar-Conraria, professor associado da Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho, considera que o primeiro-ministro estará a falar do salário mediano e não do médio, usando esta última expressão por uma questão de linguagem. E aponta outra ambiguidade: “Se forem aumentos reais, 20% é puxado, se forem nominais não é nada de especial tendo em conta a evolução da inflação“.
O economista Pedro Braz Teixeira, que considera tratar-se de um aumento nominal, também relativiza o propósito do primeiro-ministro. “A meta tinha uma ambição significativa quando foi anunciada inicialmente, mas agora com a alteração drástica do cenário da inflação para este ano e possivelmente nos seguintes tudo fica menos significativo”, aponta. Entende o apelo como uma resposta ao facto de a subida do salário mínimo não ter resultado numa subida do salário médio.
O problema é que a nossa produtividade do trabalho – por um conjunto de fatores, que inclui, por exemplo, o nível de qualificações – fica muito aquém da da média da UE.
O diretor do gabinete de estudos do Fórum para a Competitividade também questiona a fundamentação do propósito. “A única maneira de aumentar de forma duradoura o salário é através do aumento da produtividade. A história devia começar e acabar na meta da produtividade. Tudo o resto são rodriguinhos. Acho muito bem que se defina a meta, mas é preciso instrumentos que ajudem a chegar lá”.
“Eu acho muito desejável elevarmos o salário médio, mas isso, infelizmente, não é algo que se possa simplesmente ordenar às empresas que façam. E o problema é que a nossa produtividade do trabalho – por um conjunto de fatores, que inclui, por exemplo, o nível de qualificações – fica muito aquém da da média da UE”, observa a economista Vera Gouveia Barros. O que também está relacionado com o padrão de especialização da economia portuguesa.
“É contraditório com o discurso de que é necessária contenção para evitar pressões inflacionistas. A menos que tenha encontrado uma nova teoria económica em que os aumentos salariais no privado não contribuem para a inflação mas apenas os do setor público”, afirma Luís Aguiar-Conraria, para quem o primeiro-ministro “terá de se explicar melhor”.
Curiosamente, em 2021, o peso dos salários no PIB foi de 48,8%, segundo dados do INE, um ponto percentual acima da UE. O Governo estará a usar o rácio de 2019 (45%), para excluir o efeito da pandemia, já que com a retoma deste ano o peso voltará a baixar.
Empresários não arriscam compromissos
Os empresários concordam com o objetivo do Governo, mas assinalam que o apelo de António Costa chega num momento de aperto para muitos setores e de enorme incerteza sobre o futuro.
“Nós temos um objetivo interno nos próximos anos de dar um salto no vencimento médio dos trabalhadores, mas é difícil assumir compromissos porque ainda existe muita incerteza”, refere Gonçalo Rebelo de Almeida, administrador do grupo Vila Galé. Este ano a massa salarial cresceu 8%, incidindo sobretudo sobre os salários mais baixos.
“No turismo vimos de dois anos duros. Este ano estamos a chegar perto da realidade pré-pandémica, mas espera-se um abrandamento do crescimento a partir do próximo ano. Vamos ter de encontrar uma forma de continuar a fazer esse esforço, mas é preciso olhar para a situação económica e ver o que conseguimos ou não fazer. Como vai evoluir a inflação? Estabiliza ou não estabiliza? O que vão fazer os fornecedores? A situação não é clara”, sublinha o gestor.
As perspetivas para os feriados de junho e para o verão são extraordinárias, mas de um momento para o outro tudo pode acabar.
“Vivemos um momento de incerteza. Tivemos dois anos de pandemia. Quando passou a endemia veio uma guerra que não se sabe quando acaba. As perspetivas para os feriados de junho e para o verão são extraordinárias, mas de um momento para o outro tudo pode acabar”, adverte Francisco Calheiros, presidente da Associação de Turismo de Portugal.
“Não é a melhor conjuntura. Há uma pressão muito grande nos custos. Na indústria do vinho estamos a ser muito pressionados com o aumento do preço dos adubos, das garrafas, dos rótulos e do transporte. O mercado a nível mundial não absorve estes custos”, afirma o produtor João Portugal Ramos. “É um ano de margens mais pequenas para a indústria transformadora”, garante.
“Falar de revisões salariais agora é esquecer um bocado o que tem vindo a ser feito no passado. As percentagens de aumento não me chocam: se olharmos para o que tem sido feito – e que vamos continuar a fazer – vamos chegar a essa magnitude”, assegura Hugo Martins, diretor executivo da marca de vestuário Salsa.
Mas o contexto é desafiante. “Se pensarmos que uma empresa tem uma determinada estrutura de custos e de rentabilidade, passa dois anos bastante difíceis e depois aterra numa realidade em que a estrutura de custos é completamente diferente, há reajustes que têm de ser feitos. Cabe às empresas perceberem como podem ganhar eficiências”, diz o também responsável financeiro da Zeitreel, marca de moda do grupo Sonae.
A inflação vai ser mais alta do que estava previsto, haverá uma diminuição do poder de compra e é mais fácil por o ónus do lado dos empresários.
Há quem também questione as intenções políticas do repto do primeiro-ministro. “A inflação vai ser mais alta do que estava previsto, haverá uma diminuição do poder de compra e é mais fácil pôr o ónus do lado dos empresários”, diz Ricardo Costa, presidente da AEMinho. “Pôr isto desta forma é propaganda pura”, acrescenta o também CEO do Grupo Bernardo da Costa.
Ainda assim, todos apoiam o objetivo. “Os ordenados em Portugal são baixos. Todos os queremos aumentar. É bom para as pessoas, para as empresas e para o país”, sustenta Francisco Calheiros. “É um bom propósito. Uma das coisas que um empresário mais gosta é pagar mais a quem o ajuda a construir o negócio“, afirma João Portugal Ramos. “Como princípio, acho que vale a pena assumir esse desígnio. O papel do Governo é passar uma ambição, mas não se faz por decreto. O ciclo das indústrias e setores não é igual para todos”, acrescenta Gonçalo Rebelo de Almeida.
Governo tem de fazer a sua parte
“Se não houver uma contribuição do Estado é inviável. Ainda por cima num momento de tempestade perfeita que se está a formar, com aumentos dos custos de energia, dos custos de produção e dos custos de transporte”, defende Ricardo Costa. E que contribuição? “É preciso um compromisso do Governo de que vai baixar a carga fiscal”.
“A máquina do Estado é muito pesada e os nossos impostos servem para pagar essa máquina. Preferia pagar às pessoas que trabalham comigo. Como? Baixando os impostos”, diz João Portugal Ramos.
O esforço adicional das empresas não pode estar sujeito a maior carga fiscal ou custos de contexto. É bom que exista essa consciência.
Gonçalo Rebelo de Almeida sublinha que “o Estado tem de se preparar para, pelo menos, não agravar os custos de contexto burocráticos e fiscais. O esforço adicional das empresas não pode estar sujeito a maior carga fiscal ou custos de contexto. É bom que exista essa consciência”.
“É politicamente bonito, capta votos e capta simpatia dizer que temos de aumentar os salários em 20% na legislatura. Mas não diz como é que isso é feito, não se dá o manual de instruções para as empresas e para a economia em geral”, criticou António Saraiva, presidente da CIP, em declarações à RTP no domingo.
“É reconhecido que é com a [redução da] carga fiscal que também se melhora o rendimento disponível das famílias e se dá às empresas condições de sustentadamente melhorar os salários. Por isso temos defendido uma redução dos custos de contexto para que as empresas, como estão a fazer, possam sustentadamente aumentar os salários”, completou António Saraiva.
“Temos de criar as condições para que a produtividade aumente. Já referi a melhoria do nível de qualificações, mas isso tem efeitos somente a mais longo prazo. No imediato, há trabalho para fazer no alívio da burocracia, na simplificação fiscal, na remoção das barreiras à concorrência”, sublinha também Vera Gouveia Barros.
O primeiro-ministro reconheceu que o Governo tem um papel a desempenhar. “Nós temos que ter um acordo de médio prazo, no horizonte desta legislatura, sobre a perspetiva da evolução dos rendimentos. O Estado não se quer pôr fora desta equação, sabemos que podemos e devemos dar um contributo para que esta melhoria dos rendimentos seja efetiva”, declarou no domingo.
Desemprego baixo puxa por salários
“Não existem instrumentos para influenciar diretamente” o crescimento dos salários pagos pelas empresas, aponta o economista Pedro Teixeira Braz. “Acho muito bem que se defina a meta, mas é preciso instrumentos para ajudar a chegar lá”, acrescenta.
Luís Aguiar-Conraria defende que a solução está no mercado de trabalho. “Uma taxa de desemprego baixa, como temos, é o melhor para aumentar os salários. Se assim se mantiver haverá pressão para os salários subirem, independentemente das declarações”, afirma o professor de Economia da Universidade do Minho. A mais recente publicação do INE, referente a abril, coloca a taxa de desemprego nos 5,8%.
“Nas posições mais dependentes de negociação e da oferta e procura, o mercado português tem apreciado nos últimos anos. Há concorrência pelo talento para trabalhar, cá e no estrangeiro”, aponta o diretor executivo da Salsa.
“Os salários em qualquer país têm de responder à lei da oferta e da procura. A taxa de desemprego tem vindo a baixar e estamos perto do pleno emprego. Os salários estão a aumentar. Temos de deixar o mercado funcionar”, defende Francisco Calheiros.
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