Como será o dinheiro no futuro? Será “programável”, mas há um “lado sombrio”
No futuro o dinheiro vai ser "programável" e através vai ser possível incorporar comportamentos. Contudo, há um lado sombrio de termos o governo a controlar as nossas decisões com o novo dinheiro.
Como vai ser o dinheiro no futuro? Vai ser “programável”, uma aplicação de computador, e através dele vamos poder incorporar comportamentos, preveem os especialistas. Enquanto os governos e os bancos centrais podem desempenhar um papel útil na democratização financeira, há um “lado sombrio” que ameaça a promessa que o dinheiro do futuro poderá trazer: o risco de estas autoridades a controlarem as nossas decisões.
“O que acontecerá quando o dinheiro for um programa de computador? Essa é a diferença chave entre o dinheiro eletrónico de hoje e o dinheiro programável de amanhã”, começou por afirmar o diretor de cripto e ativos digitais do Banco Santander, John Whelan, na conferência internacional que o banco espanhol organiza anualmente, que decorreu em Madrid, no dia 3 de novembro.
“Com o dinheiro programável, vamos poder incorporar um comportamento diretamente na construção do próprio dinheiro”, prosseguiu e desenvolveu logo a seguir a sua ideia no painel dedicado às CBDC (moedas digitais dos bancos centrais), criptomoedas e digitalização.
“És pai, e queres dar uma mesada ao teu filho que tem cinco anos. Podes incorporar um comportamento na mesada em que apenas pode gastar na loja de brinquedos; ou uma filha de 14 anos que só poderá gastar em roupa ou livros da escola; ou um filho de 21 anos, que só pode gastar dinheiro em equipamento desportivo”, exemplificou Whelan.
O “lado mais sombrio”
Há muito que o dinheiro “eletrónico” – para usar o termo de Whelan – faz parte do nosso dia-a-dia. A taxonomia evoluiu muito nos últimos anos e consolidou: criptomoedas, tokens, stablecoins, CBDC, digital bonds…
Ao lado do diretor do Santander, Eswar S. Prasad, autor do livro “The Future of the Money: How How the Digital Revolution Is Transforming Currencies and Finance”, considerou que o dinheiro do futuro poderá ajudar a democratizar o acesso ao mundo financeiro, um papel que caberá aos governos e aos bancos centrais – que já avançaram com planos para o dólar digital, o euro digital ou o yuan digital.
“Qual o papel dos governos e os bancos centrais podem ter que o setor privado não terá? Que tipo de falhas de mercado poderão ter de ser respondidas? Isso vai ao coração do pensamento sobre se as CBDC terão um papel útil ou não”, referiu.
Ainda assim, o também professor de Política de Comércio Internacional da Universidade de Cornell identificou um “lado sombrio” que o dinheiro programável e as CBDC poderão ter.
“A programabilidade do dinheiro tem o potencial para sustentar inovações financeiras muito interessantes, poderá criar produtos e serviços. (…) Abre muitas possibilidades para as instituições financeiras, mas tem um lado mais negro também. Sim, podemos impedir que a nossa versão de 21 anos gaste mal o dinheiro, mas podemos ter um governo autoritário ou outro governo a decidir que quer que usemos as CBDC apenas para certas coisas e não para certos outros tipos de transações”, explicou.
Questionada sobre o impacto que o dinheiro do futuro poderá ter na geração de riqueza, Izabella Kaminska (outra das oradoras no painel) também deixou uma nota menos otimista. A ex-jornalista do Financial Times introduziu o termo de “Gosplan 2.0”, uma espécie de “sistema de economia de comando da URSS”, onde o mecanismo de controlo seria justamente o “novo dinheiro”.
“[Na URSS] a ideia era que, eventualmente, não precisaríamos de dinheiro porque tudo iria dos produtores para aqueles que precisavam apenas instantaneamente. Agora as pessoas dizem que talvez o Gosplan não tenha funcionado porque não tinha a tecnologia e agora seja diferente”, afirmou a fundadora do site de finanças The Blind Spot.
Ansiedade e teorias da conspiração
Para Esward Prasad, podemos então estar a entrar num mundo em que a promessa de descentralização das finanças se esvai. Ao invés, podemos ter “potencialmente um mundo com maior grau de centralização” e onde as instituições existentes e com a tecnologia apropriada acabarão por levantar mais barreiras e a dar vantagem aos incumbentes, ao contrário do que se previa.
“Acabamos por ter ainda mais concentração e ainda mais desigualdade, então há um lado potencialmente mais sombrio de tudo isso”, frisou. “Mas espero que alcancemos um lugar melhor.”
Izabella Kaminska gostaria, por isso, de ver mais discussão pública sobre o que será o dinheiro no futuro e sobre os projetos e inovações que estão a ser desenvolvidos neste momento e não apenas nos círculos tecnocráticos. “É preciso ver o Russell Brand [apresentador e comediante britânico] para realmente entender o que o público está a pensar, é daí que as teorias da conspiração estão a surgir, porque as pessoas têm ansiedade sobre isso e não veem tudo como positivo.”
Bancos centrais arriscam credibilidade com CBDC
Nos bancos centrais, que arriscam perder o controlo da moeda, os tempos também não serão os mais tranquilos, segundo os especialistas. “As implicações monetárias não estão totalmente compreendidas”, disse John Whelan, explicando que “há muitas opções em cima da mesa sobre como poderá ser o desenho das CBDC”.
“Vamos ver diferentes abordagens na União Europeia, no Reino Unido ou no Brasil. Os EUA também estão a discutir como poderá ser o dólar digital: se será uma CBDC emitida pela banca comercial, por infraestruturas do mercado financeiro (FMI, sigla em inglês) ou se será uma stablecoin não bancária.
Prasad apontou as “novas formas de riscos financeiros” que o mundo das criptomoedas e ativos digitais está a criar. “Por exemplo, stablecoins parecem fundos mútuos não regulamentados do mercado monetário que, como sabemos, causaram alguns problemas durante a crise financeira”, recordou.
Embora alguns riscos possam ser geríveis através de “módulos de regulação” para novos produtos que possam surgir, o professor tem uma preocupação maior: a possibilidade de termos CBDC programáveis ameaça a integridade e credibilidade de um banco central.
“Podemos pensar, por exemplo, em dinheiro com data de validade. Se quisermos avançar com um estímulo do género que foi lançado durante a Covid que seja eficaz, podemos fazer com que as pessoas saiam e gastem o dinheiro talvez em bens duradouros. O problema é que, uma vez que o banco central é visto como tendo potencialmente essa capacidade de implantar a política orçamental de uma maneira mais direcionada, (…) torna-se num agente do governo”, explicou.
Neste cenário, o banco central passa a assumir um mandato ainda maior do que já tem, segundo Prasad. “Há uma boa possibilidade inerente às CBDC, em que os bancos centrais podem usá-las como uma ferramenta para alcançar objetivos como maior inclusão financeira e estabilidade do sistema de pagamentos, mas há um grande risco”, alertou.
Izabella Kaminska vê as CBDC como resposta às inovações que estão a ser criadas no setor privado, como a Libra do Facebook.
Perante as dúvidas, e admitindo que podia ser controversa a sua posição, John Whelan afirmou que os bancos centrais não têm necessidade de emitirem formas digitais da sua moeda e que “uma abordagem prudente seria esperar para ver”. Na sua opinião, os bancos centrais e governos deviam criar um enquadramento de registo e licenças apropriado, “um livro de regras para a indústria” e depois “uma estrutura de contas apropriada no banco central poderia ser alguma forma de conta de reserva técnica para operar de forma a assegurar a transação”.
O jornalista viajou a Madrid a convite do Santander.
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