COP27. Acordo dá resposta a “injustiça gritante”, mas “fracassa” no corte de gases e fim aos combustíveis fósseis
Na cimeira do clima foram dados os primeiros passos em direção ao fundo de Perdas e Danos, mas a ambição ficou por aqui. Próxima COP será no Dubai e também não deverá pressionar combustíveis fósseis.
Ao fim de 15 dias, chegou na madrugada de domingo um acordo a Sharm el-Sheikh, pela mão dos ministros presentes na COP27. O pacto “histórico“, pedido por António Guterres antes do arranque da cimeira do clima, parecia ter-se concretizado, mas só numa matéria: o fundo de Perdas e Danos destinado a ajudar os países mais vulneráveis a enfrentar os efeitos das alterações climáticas ganhou luz verde.
“Congratulo a decisão de estabelecer um fundo de Perdas e Danos e de o pôr em funcionamento nos próximos tempos. Claramente, isso não será suficiente, mas é um sinal político muito necessário para reconstruir a confiança quebrada”, reagiu António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas.
O pacto, que resultou de longas horas de negociação pela noite dentro, e de várias propostas em cima da mesa (que em muitos momentos teve a União Europeia, Reino Unido, Suíça e Japão a bloquear os avanços), determina a nomeação de uma comissão que terá como objetivo identificar os países que poderão beneficiar desta ajuda (entre eles os países menos desenvolvidos, pequenos Estados insulares em desenvolvimento e Estados africanos, não excluindo à partida outros países). Para já, as economias mais desenvolvidas deverão ser as primeiras a ser chamadas para contribuir, mas este fundo deverá contar com a ajuda dos bancos de desenvolvimento multilaterais e das agências das Nações Unidas. A formalização deste fundo só deverá ficar concluída na COP28, estando previsto que as verbas comecem a ser distribuídas em 2024. Por agora, não tem qualquer dotação financeira.
Filipe Duarte Santos, professor e presidente do Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável (CNADS), considera o acordo como “positivo” por finalmente dar resposta a uma “injustiça gritante” que se arrastava há 30 anos. Em 1991, a Aliança dos Pequenos Países Insulares apresentou uma proposta aos países desenvolvidos para a criação de um mecanismo que os compensasse pelas consequências resultantes do aumento do nível do mar e, só em 2007, em Bali, é que o tema começou a ser discutido, apesar de, ano após ano, a criação do fundo ter sido sempre adiada.
“A adaptação dos países em desenvolvimento é uma questão importante por estar relacionada com a justiça climática”, afirma o professor em declarações ao ECO/Capital Verde. “Há aqui uma injustiça gritante: estes países são menos responsáveis pelas emissões de gases com efeito de estufa [GEE] e portanto menos responsáveis pelos problemas que temos, ao mesmo tempo que são os mais vulneráveis“, considera o professor ao ECO/Capital Verde.
Já o secretário-geral do Business Council for Sustainable Development (BCSD) considera que o fundo de Perdas e Danos “não justifica a pegada carbónica da COP27” e diz que face aos recursos disponíveis e diagnósticos recolhidos “não se percebe como é que a meio do caminho [para 2030] seja aceitável fazer uma COP tão mal sucedida“. No fundo, em relação à COP26, em Glasgow, João Meneses considera que se avançou “um milímetro”.
“A COP escolheu o implementação como o mote este ano — implementing together — e não foi isso que se verificou”, diz o responsável. “O único momento de ação foi o da criação do fundo de Perdas e Danos, e mesmo esse aspeto tropeça no facto de não ter ficado detalhado como será a sua operacionalização, nem a sua capitalização. Foi um reconhecimento ético e simbólico, e é relevante, mas é de longe suficiente“, diz ao ECO/Capital Verde.
Apesar dos avanços, Filipe Duarte Santos mantém-se conservador quanto às expectativas para a concretização deste apoio que, para já, não tem um valor definido. “Haverão países que estarão disponíveis para fazer esse esforço“, assinala Filipe Duarte Santos, referindo nações como a Dinamarca, Bélgica ou Áustria que, ao longo das duas semanas da cimeira, comprometeram-se a alocar milhares de milhões para o fundo de Perdas e Danos. No entanto, as maiores economias — que à partida, serão, também, os maiores contribuidores — como os Estados Unidos poderão ver a missão dificultada.
“Nos EUA será mais difícil desbloquear as verbas, sobretudo agora que a Câmara dos Representantes está sob o domínio dos republicanos. Será um problema adicional”, admite o professor, ecoando as preocupações já adiantadas pelo enviado especial John Kerry, durante a cimeira.
Compromisso de “redução drástica” das emissões em stand by
Foi uma vitória o facto de esta ter sido a primeira COP em que a questão das Perdas e Danos foi aceite como um tema oficial da agenda — e mais importante ainda foi ter terminado com um acordo que lança as bases para este fundo. Mas deixou para trás uma questão determinante para o agravamento das alterações climáticas: uma maior ambição para a redução das emissões de gases com efeito estufa (GEE), de forma a limitar o aquecimento em 1,5º Celsius. Na proposta da União Europeia, os 27 Estados-membros pediam que o texto final incluísse um pico de emissões globais até 2025. Mas a sugestão foi recusada.
“O que temos aqui é um passo muito curto para os habitantes do planeta. Não proporciona esforços adicionais suficientes por parte dos principais emissores para aumentar e acelerar as suas reduções de emissões“, disse Frans Timmermans, vice-presidente da Comissão Europeia, num discurso inflamado, na sessão plenária final da COP27. “Devíamos ter feito muito mais, os cidadãos esperavam muito mais de nós. Isso significava: reduzir mais rapidamente as emissões”, afirmou.
Por sua vez, António Guterres não deixou margens para dúvidas: “Sejamos claros: o nosso planeta ainda está no serviço de urgência. Temos de reduzir drasticamente as emissões agora – e este assunto não foi abordado pela COP27”, concluiu.
Filipe Duarte Santos considera esta omissão como um “fracasso” pela realidade em que vivemos. “Estamos perante uma certa contradição”, diz. “Ao fim de 27 COPs, ainda não se detetou um decréscimo nas emissões de GEE e este ano as emissões vão atingir um máximo histórico” diz, apontando que as Nações Unidas preveem que até ao final do ano as emissões destes gases ascendam a 37,5 mil milhões de toneladas. “Não houve nenhum outro ano em que [as emissões] tivessem sido tão elevadas“, alerta.
Para o presidente do CNADS, “estamos perante uma situação que não augura nada de bom para o futuro“, dado que entre 2021 e 2022, as emissões aumentaram 1% à escala global, mas existem países, como a Índia, onde essa percentagem chega aos 6%. “Aquilo que determina a intensidade e gravidade dos impactos das alterações climáticas é a concentração de GEE na atmosfera e essa não para de subir“.
“Vamos para o olho do furacão fazer a próxima COP”
O compromisso de por um fim aos combustíveis fósseis foi outro aspeto em não foi possível ser concretizado em Sharm el-Sheikh, e tudo indica, também não deverá ficar formalizado na próxima cimeira do clima, que decorrerá 30 de novembro e 12 de dezembro, de 2023.
“Acho muito pouco provável”, admite Filipe Duarte Santos. “Enquanto os combustíveis fósseis continuarem a ser produzidos em abundância, como o petróleo, e a serem baratos e acessíveis, como o gás natural e o carvão, os países em desenvolvimento e sem apoio na transição energética vão continuar a consumi-los”, alerta.
Mas para João Meneses, secretário-geral da BCSD, a situação tem a agravante por se realizar uma cimeira para o clima, pela segunda vez consecutiva, num país “que não acredita na causa”. Os Emirados Árabes Unidos — um dos maiores produtores de petróleo em todo o mundo — serão os próximos anfitriões.
“Estamos a fazer cimeiras do clima a uma distância muito curta de 2030, em países como o Egito ou os Emirados Árabes Unidos, que não acreditam na causa e, portanto, não terão força diplomática para criar um momento disruptivo e inspirador e capaz de mobilizar os interesses”, considera. “Vamos ao olho do furação fazer a COP. É um erro de casting“, aponta, acusando as Nações Unidas de “falta de estratégia e visão”.
Face a esta realidade, a responsável pela Sustainability & Blue Economy Industry da Beta-i apela a que as delegações que se desloquem ao Dubai, no próximo ano, cheguem “preparadas” e cientes do nível de exigência das negociações, argumentando que será preciso “coragem política” para encerrar a próxima COP com um acordo onde fique determinado um prazo para o fim dos combustíveis fósseis e um glossário que indique a que combustíveis a medida se refere.
“A próxima COP exige uma preparação bastante séria dos negociadores, para saberem o que vão encontrar e o que deve ser exigido. Os negociadores e os países têm que se preparar para uma reação nas negociações, sem medo do confronto“, defende Ana Costa ao ECO/Capital Verde, reconhecendo o valor da proposta apresentada pela Índia, este ano.
“A Índia apareceu este ano com uma jogada de mestre ao pedir que fossem incluídos o petróleo e o gás na redução dos consumos“, diz.
Em 2021, aquando da aprovação do Pacto Climático de Glasgow, a delegação de Nova Deli apressou-se a apresentar uma emenda sobre o carvão, à última hora, pedindo que se alterasse a condição do fim do seu uso para uma “diminuição”. Na altura, a presidência da COP e as delegações presentes classificaram a jogada como um “golpe”.
“Até agora, só se falava no carvão e como podíamos restringir a sua utilização, e acho que [a proposta da Índia] tocou na ferida. Os combustíveis fósseis também englobam o gás natural e o petróleo”, sublinhou a responsável da Beta-i, acrescentando que no Dubai surgirá uma oportunidade renovada de incluir os países produtores de combustíveis fósseis na discussão. “Esta discussão também tem que chegar aos países onde é mais difícil a transição”, defende.
Para João Meneses, sem um compromisso que visa apostar numa maior incorporação das energias renováveis no mix energético e sem uma linguagem clara a vinculativa de empenho em relação às restantes metas climáticas, “não existem duvidas de que não vamos cumprir o Acordo de Paris”, relatando que durante as negociações em Sharm el Sheikh “o lobby dos combustíveis fosseis voltou a tentar retornar à ideia de limitar o aquecimento global em 2 graus Celsius”, ao invés dos 1,5 graus Celsius.
“Estamos a tentar fazer frente a uma união com um mata-moscas”, alerta o secretário-geral da associação. “Estamos com o pé no acelerador na [autoestrada para o inferno] highway to hell“, diz, repetindo as palavras de António Guterres, proferidas durante o discurso de abertura da cimeira.
Da parte das associações ambientalistas, Zero e Oikos, a posição é a de que “o fracasso em travar os combustíveis fósseis deixa o nosso mundo à beira de um catastrófico desastre global“. Fazem neste sentido o apelo a que no próximo ano os avanços sejam mais significativos. “Sem uma ação muito maior e mais rápida, não há esperança de se manter a meta dos 1,5 graus e testemunharemos a morte de milhões“, frisam, em comunicado.
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