Exclusivo Unidos na guerra, EUA e União Europeia estão em conflito no comércio
Governo português defende uma solução negociada para a disputa comercial com os EUA sobre os subsídios à energia verde, sem envolver a Organização Mundial de Comércio.
Na recente visita aos EUA, o presidente francês, Emmanuel Macron, levava na bagagem um “irritante” nas relações entre a UE e o seu aliado político e militar de longa data. Nas capitais europeias cresce o descontentamento sobre os subsídios que serão dados à indústria americana para acelerar a transição climática, considerados uma medida protecionista e que desvirtua a concorrência. Há quem defenda que a disputa deve ser levada à Organização Mundial do Comércio. O Governo português desvaloriza a tensão e prefere uma solução negociada.
Na origem do conflito comercial está a Inflation Reduction Act (IRA), um diploma que autoriza 738 mil milhões de dólares em despesa e apoios de 391 mil milhões para a transição energética e climática. Há também verbas para a saúde, nomeadamente para o Affordable Care Act e para a redução do preço dos medicamentos, além de medidas fiscais, como a a taxa mínima de IRC de 15% para as grandes empresas, acordada pelo G20.
Porque está um pacote financeiro para acelerar a transição climática a deixar tão irritada a União Europeia, que tem no Green Deal um dos seus principais eixos políticos? A legislação anti-inflação de Biden atribui créditos fiscais para componentes usados no fabrico de carros elétricos ou infraestruturas para a produção de energias renováveis, desde que sejam produzidos nos EUA.
Cerca de um mês depois de Biden assinar a nova legislação, a 16 de agosto, a Reuters fez um levantamento de dezenas de empresas que anunciaram novos investimentos ou a aceleração dos existentes, desde refinarias de lítio e fábricas de baterias ou carros elétricos, a unidades de produção de painéis fotovoltaicos. O que só veio aumentar o temor de que os incentivos desviem investimento que poderia vir para a União Europeia ou levem mesmo à relocalização de indústrias, numa altura em que o Velho Continente se debate com faturas de energia agravadas pela guerra na Ucrânia e as sanções à Rússia. Além disso, graças aos subsídios, aquelas empresas poderão competir no mercado internacional com preços mais atrativos.
A solução será encontrada em negociação entre as duas partes, sem esquecer que a Europa e os EUA fazem parte da OMC e de um universo muito maior de áreas de negócio. Se nós começarmos a levantar dificuldades no quadro da OMC, essas dificuldades terão impacto noutras áreas do globo.
No início de novembro, a Comissão Europeia enviou um comentário para o Tesouro dos EUA a arrasar a legislação. Segundo o Financial Times, Bruxelas argumentou que a IRA poderia trazer danos económicos para os EUA e os seus parceiros mais próximos, resultar em ineficiências e distorções de mercado, desencadear uma corrida global aos subsídios e levar a retaliações. Bernd Lange, que preside ao Comité de Comércio Internacional do Parlamento Europeu, defendeu a apresentação de uma queixa junto da Organização Mundial de Comércio (OMC). Por ora, nas capitais europeias prefere-se a via negocial, como é o caso de Lisboa.
“Estamos a acompanhar muito de perto esta nova legislação dos EUA. Não temos dificuldade de fundo com a legislação, mas temos de ver como a liberdade de prestação de serviços e de negócios entre a Europa e os EUA se mantém neste quadro que foi estabelecido”, afirma o secretário de Estado da Internacionalização, Bernardo Ivo Cruz, em declarações ao ECO.
O governante descarta a possibilidade de uma “guerra comercial”, considerando “que os EUA também já reconheceram que a legislação tem arestas para limar”. Questionado sobre a possibilidade de a UE responder também com subsídios, Bernardo Ivo Cruz responde que “a solução será encontrada em negociação entre as duas partes, sem esquecer que a Europa e os EUA fazem parte da OMC e de um universo muito maior de áreas de negócio. Se nós começarmos a levantar dificuldades no quadro da OMC, essas dificuldades terão impacto noutras áreas do globo. Nós temos de olhar para estas questões de uma forma mais global”, defendeu. “Neste momento estamos a conversar e a conversar encontraremos soluções que serão do agrado de toda a gente” respondeu, questionado sobre se a organização com sede em Genebra deve intervir.
O presidente da Câmara de Comércio dos EUA em Portugal (AmCham) também acredita numa solução negociada. “Estamos a falar de dois blocos que fazem parte de um mesmo bloco, que é o dos países ocidentais, e que se guiam pelos mesmos valores, pelo estado de Direito, o respeito pelos direitos humanos e o funcionamento das economias de mercado”, refere António Martins da Costa. “É sentando-se à mesa que chegarão a um acordo nesta matéria”, defende, mesmo que sejam necessárias várias reuniões.
“O mecanismo permite exceções, de não pôr tantas barreiras comerciais a parceiros com quem os EUA tenham acordos de comércio. Infelizmente, não é o caso da UE, porque o acordo que esteve quase a ser assinado acabou por cair. Há aqui uma tentativa de ver se é possível considerar que essa exceção também se aplica a aliados, que é o caso da União Europeia”, explica o presidente da Amcham.
A Inflation Reduction Act deve fazer-nos refletir sobre como podemos melhorar as nossas estruturas de auxílio estatal e adaptá-las a um novo ambiente global.
A França tem sido um dos principais defensores de um pacote de subsídios rival. Uma opção apoiada publicamente pela presidente da Comissão Europeia, que no domingo apelou a uma adaptação das regras sobre ajudas de Estado para acomodar subsídios às energias verdes. “A Inflation Reduction Act deve fazer-nos refletir sobre como podemos melhorar as nossas estruturas de auxílio estatal e adaptá-las a um novo ambiente global. A nova política industrial assertiva dos nossos concorrentes exige uma resposta estrutural”, afirmou Ursula Von der Leyen.
O presidente francês abordou a questão no encontro com Joe Biden, na semana passada, e recebeu uma resposta encorajadora durante a conferência de imprensa conjunta. “Há ajustes que podemos fazer que podem tornar mais fácil para os países europeus participarem ou ficarem por sua conta, mas isso é algo a ser resolvido”, disse o presidente americano. “Nunca pretendi excluir quem estava a cooperar connosco. Essa não era a intenção”, disse Biden, afirmando também que não irá “pedir desculpa” por legislação que é vital para criar emprego no país.
Esta semana ocorreu uma reunião do Conselho de Comércio e Tecnologia, que reúne os dois blocos, onde foi avaliado o trabalhado da task force conjunta criada para ultrapassar o diferendo. A União Europeia reiterou as suas preocupações sobre as “medidas discriminatórias” e “subsídios distorcivos”, mas notou os “progressos preliminares alcançados”, esperando que os EUA respondam de forma “construtiva”.
A comissária da Concorrência, Margrethe Vestager, afirmou que as conversas “mexeram o ponteiro no sentido de uma solução”. “Uma das razões porque sinto conforto é porque que já fomos capazes de resolver temas difíceis no passado”, acrescentou, citada pela Bloomberg.
A União Europeia não é a única com queixas. O Canadá avançou já com apoios, para evitar deslocalizações. Japão e Coreia do Sul, países onde a indústria automóvel também tem um grande peso, também tornaram pública a sua discordância. Seul está em conversações com Washington e quer que as empresas sul-coreanas tenham acesso aos créditos fiscais pelo menos até estar concluída a nova fábrica de veículos elétricos da Hyundai no estado da Geórgia, em 2025.
Se a invasão russa da Ucrânia trouxe um novo fôlego às relações políticas entre os EUA e a União Europeia, no plano comercial mantém-se o desconcerto. Os dois blocos negociaram um acordo de comércio livre entre 2013 e 2016, que morreu com a chegada de Donald Trump à Casa Branca. O presidente Republicano optou pela confrontação, impondo tarifas agravadas sobre algumas exportações europeias, que deixaram sequelas. A expressão “guerra comercial” voltou, agora com Joe Biden, por causa dos subsídios atribuídos pela legislação Democrata para baixar a inflação.
A Inflation Reduction Act será o maior investimento de sempre dos EUA para a redução das emissões poluentes e representou uma importante vitória política para o presidente antes das eleições intercalares, depois de a legislação-bandeira do seu programa eleitoral, a Build Back Better, ter merecido a oposição do senador Democrata Joe Manchin, por o pacote de despesa de 3,5 biliões de dólares contribuir para alimentar a inflação. A IRA é, na prática, uma emenda da Build Back Better. Mesmo sem o impulso orçamental inicial, é considerada uma legislação histórica, contribuindo para um corte de 40% nas emissões até 2030 (face a 2005), na estimativa do Governo.
Resta saber se provocará danos numa relação comercial que em 2021 representou uma soma recorde de 1,2 biliões de dólares e dá suporte a 9,4 milhões de empregos diretos e 16 milhões indiretos, dos dois lados do Atlântico.
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