A comissão de inquérito à TAP valeu a pena? Sim, mas deixou um triste retrato
A CPI à TAP deixou a nu os problemas de governança nas empresas e no Governo e os defeitos de uma democracia dominada pela partidocracia. A crença na mudança é pouca.
A comissão parlamentar de inquérito (CPI) à TAP termina esta quinta-feira, 141 dias depois de ter tomado posse em fevereiro, tempo em que ouviu presencialmente e por escrito 56 personalidades e recolheu um imenso manancial de documentação. Valeu a pena? Os economistas e politólogos ouvidos pelo ECO consideram que sim, mas o que se viu não foi bonito.
Os deputados vão hoje discutir e votar o relatório final na derradeira reunião da CPI. O voto contra da direita é certo, resta saber se Bloco e PCP também acompanham. Ao longo de cinco meses escalpelizou-se a privatização da TAP em 2015 e ficaram-se a saber detalhes sobre a forma como a empresa foi capitalizada usando os “Fundos Airbus” ou a situação limite em que se encontrava a tesouraria da companhia.
Ficou a conhecer-se melhor os contornos da compra do negócio da manutenção e engenharia da Varig no Brasil, essencial para alguns, ruinoso para a maioria, os salários, bónus e outras regalias dadas aos administradores, os casos de ingerência política e, claro, os temas mais polémicos, da saída de Alexandra Reis aos desacatos no Ministério das Infraestruturas, já conhecidos como o “Galambagate”.
Mas o que fica destes cinco meses de CPI? Valeu realmente a pena? O presidente do ISEG, João Duque, acredita que sim. “Permitiu perceber melhor os meandros do que muita gente não sabia”, afirma. Por exemplo, a forma como a tutela das empresas públicas é exercida pelos ministros. “Não há interferência? É manifesta a prova. Temos poucos processos montados e estabelecidos que sejam mais fortes que as pessoas. Noutras organizações não é assim”, aponta.
Temos poucos processos montados e estabelecidos que sejam mais fortes que as pessoas. Noutras organizações não é assim.
O presidente do Instituto Português de Corporate Governance (IPCG), João Moreira Rato, considera que a CPI foi uma oportunidade perdida. “Acho que não foi suficientemente enfatizado na CPI a importância da governance. Atirou-se o tema para cima da mesa e foi menorizado e desvalorizado pelos políticos”, considera.
“Há inconsistências entre os deveres das tutelas financeira e setorial, que deviam estar definidos à partida. Há zonas sombra em que não se sabe quem é responsável. É o que se deve evitar“, refere o antigo presidente do conselho de administração do Banco CTT. “Não me parece que deste exercício tenha saído uma clarificação”, lamenta.
Uma das recomendações que consta do relatório preliminar é “garantir a melhoria da articulação entre a tutela financeira e setorial, assegurando que a divisão e conexão de responsabilidades é clara e concebida para servir o interesse público”. Outra aconselha “robustecer os canais de relacionamento institucional entre o Governo e as empresas do setor público empresarial”.
Acho que não foi suficientemente enfatizado na CPI a importância da “governance”. Atirou-se o tema para cima da mesa e foi menorizado e desvalorizado pelos políticos.
Sobre a indemnização a Alexandra Reis, João Moreira Rato defende que “devia ser definido ex-ante e seguir um caminho pré-estabelecido”, acrescentando que “há um problema gravíssimo de falta de transparência do Estado”.
“Se numa empresa pública com o escrutínio que havia na TAP depois de lá termos enfiado 3,2 mil milhões de euros aconteceu o que aconteceu, o que podemos imaginar sobre as outras empresas públicas”, comenta apenas Luís Aguiar-Conraria, economista e professor da Universidade do Minho.
O presidente do IPCG revelou que está a preparar um grupo de trabalho para definir linhas de orientação sobre governance nas empresas públicas, que deverá começar a reunir depois do verão.
Falta de independência dos deputados
“Vale sempre a pena porque estamos todos a discutir isto”, afirma António Costa Pinto, professor jubilado e investigador de ciência política da Universidade de Lisboa, sobre a comissão de inquérito. Ainda que considere que a CPI “pode não ter sido boa para a imagem da democracia”, apontando “os exageros em direto”. “Foi um ministro que disse que era um reality show [Pedro Adão e Silva, ministro da Cultura]. Sim, foi um reality show“.
A nu ficou também a forma como as lógicas políticas acabam por se sobrepor. “Todas as comissões parlamentares de inquérito são limitadas pela maioria vigente. A maioria tenta impedir que a oposição marque pontos”, começa por referir António Costa Pinto. “Os deputados não são independentes. São dependentes de um diretório oculto que é o partido que os acolheu“, aponta.
Os deputados não são independentes. São dependentes de um diretório oculto que é o partido que os acolheu.
Um ponto sublinhado também pelo presidente do ISEG. “A CPI serviu para nós avaliarmos a qualidade do sistema político nacional. A forma como elegemos os parlamentares propicia este tipo de espetáculo. Há uma pessoa que não estando lá manda no Parlamento, que é o primeiro-ministro. Luís Montenegro não está no Parlamento e também manda nos deputados”, atira João Duque.
“Os deputados prestam contas a quem os coloca na lista em lugar elegível. Desta vez isso ficou ainda mais evidente. Os parlamentares não são independentes. No Reino Unido, os deputados do Partido Conservador removeram o líder do partido, Boris Johnson. Cá era inimaginável que uma maioria parlamentar fizesse o mesmo”, acrescenta. “Temos uma democracia refém de parlamentares que prestam vassalagem ao líder do partido”, conclui, defendendo os círculos uninominais.
Temos uma democracia refém de parlamentares que prestam vassalagem ao líder do partido.
“Temos uma democracia com uma partidocracia e a partidocracia sobrepõem-se à democracia. Uma CPI é uma coisa dependente de um diretório de um partido”, diz também António Costa Pinto. O problema está numa palavra que diz não ter correspondência direta em português: “accountability“, que é mais do que responsabilidade ou escrutínio. “Há falta de accountability na cultura democrática portuguesa”, observa.
O politólogo considera infeliz o relatório preliminar, da responsabilidade da deputada socialista Ana Paula Bernardo, que motivou críticas de toda a oposição pela forma como iliba o Governo. “O relatório preliminar, demasiado parcial e pró-governamental, não é bom para o PS“, aponta, acrescentando que foi mal recebido até por alguns deputados do PS. “É um processo de aprendizagem. Da próxima vez já não cometem este erro”.
Se a conclusão final é de que está tudo bem é porque não há problemas. Não se vai mudar nada.
“A CPI mostrou uma cultura seguidista, de rebanho, atrás do líder. Às vezes a pior forma de servir o líder é seguir o líder“, considera António Costa Pinto, que não tem dúvidas de que a comissão, ainda assim, fragilizou o Governo: “Foi obrigado a demitir um ministro e ficou com outro preso por cordéis”.
João Duque tem dúvidas que alguma coisa venha a mudar, a avaliar pelo relatório preliminar. “Se a conclusão final é de que está tudo bem é porque não há problemas. Não se vai mudar nada”, remata o presidente do ISEG.
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