Obras para Espanha, custos elevados, indecisão e PPP. Quatro riscos dos grandes investimentos
Vêm aí um novo ciclo de grandes investimentos em infraestruturas de transportes. Os especialistas apontam vários riscos que o país deve ter em conta.
- O ECO vai divulgar 5 séries semanais de trabalhos sobre temas cruciais para o país, no período que antecede as eleições legislativas de 10 de março. Os rendimentos das famílias, o crescimento económico, a crise da habitação, o investimento em infraestruturas e os problemas da Justiça vão estar em foco. O ECO vai fazer o ponto da situação destes temas, sintetizar as propostas dos principais partidos e ouvir a avaliação dos especialistas.
Depois de uma queda acentuada na última década, vem aí uma nova vaga de investimento em infraestruturas, desde a alta velocidade à rodovia, passando pelo novo aeroporto. Uma aposta que é defendida pelos especialistas e unânime para os partidos, mas que não é isenta de riscos. Um deles é as construtoras portuguesas verem a oportunidade fugir para Espanha.
A “seca” de investimento público após 2010, e que só nos últimos anos começou a ser revertida, deixou sequelas. Um dos desafios que o país vai enfrentar na concretização do investimento em infraestruturas de transportes é a falta de capacidade instalada na construção e engenharia.
“A capacidade produtiva do setor para responder a uma nova vaga de investimento é mais reduzida do que era no passado”, afirma Carlos Oliveira Cruz, professor catedrático do Instituto Superior Técnico. “A construção tem 80 a 100 mil trabalhadores em falta”, assinala o especialista em transportes.
“As empresas têm dificuldade em manter a capacidade produtiva porque não há um pipeline de projetos e uma previsibilidade do que vai ser o investimento público”, aponta também Carlos Oliveira Cruz.
Quando for preciso nova obra que exige experiência acumulada de pessoas e projetos as empresas estrangeiras têm e as portuguesas não.
O professor catedrático considera, por isso, que “muitas empresas espanholas vão ganhar estes concursos” para as grandes obras públicas. “Isso parece-me inevitável”, diz.
O bastonário da Ordem dos Engenheiros, Fernando de Almeida Santos, partilha o mesmo receio. “Quando for preciso nova obra que exige experiência acumulada de pessoas e projetos as empresas estrangeiras têm e as portuguesas não”, afirma.
“A incorporação de empresas e talento nacional vai ser menor do que no passado porque vamos ter empresas estrangeiras a ganhar os concursos”, acrescenta ainda Carlos Oliveira Cruz. Fernando de Almeida Santos defende que “é preciso salvaguardar o interesse nacional” e ter “alguma seletividade na escolha”.
A administração pública perdeu capacidade de planeamento nestas áreas. Perderam-se recursos humanos e competências.
“Sei que a concorrência é livre, mas em Espanha é quase impossível as empresas de construção entrarem e em Portugal entram como manteiga”, lamenta o bastonário.
Para o próximo ano, a Infraestruturas de Portugal tem previsto um investimento de 1.200 milhões em ferrovia e rodovia, um crescimento de 26%. O presidente, Miguel Cruz, considera que “as empresas nacionais têm estado a crescer em capacidade e investimento” e que “existe capacidade” para fazer face à obra prevista, embora não haja “muito mais capacidade para a alargar”.
Outra fragilidade reside no próprio Estado. “A Administração Pública perdeu capacidade de planeamento nestas áreas. Perderam-se recursos humanos e competências. Isso está a sair-nos caro. O aeroporto é um exemplo”, afirma Fernando Alexandre, professor associado de economia da Universidade do Minho.
“Tem havido um esvaziamento das competências do Estado para a atividade privada ou para o estrangeiro”, aponta também Fernando de Almeida Santos, assinalando ainda a “falta de capacidade do Estado para atrair engenheiros”.
A alta velocidade justifica o investimento?
As autoestradas lançadas na primeira década do século e que hoje continuam subutilizadas são um exemplo de que os grandes investimentos podem afinal não ter o retorno esperado ou só o ter num período muito mais alargado que o previsto.
Alfredo Marvão Pereira, professor do Departamento de Economia do College of William and Mary, no estado americano da Virgínia, tem dúvidas que a alta velocidade ferroviária para passageiros em Portugal tenha um custo-benefício positivo, tendo em conta a dimensão do mercado. “Não tenho informação recente, mas uns cálculos meus de há alguns anos sugeriam que não, nem pouco mais ou menos”, afirma o coautor do livro Investimentos em Infraestruturas em Portugal, editado em 2016 pela Fundação Francisco Manuel dos Santos.
O ponto é que os custos de instalação são proibitivos comparando com o número potencial de utilizadores tomando por base a população servida.
“O ponto é que os custos de instalação são proibitivos comparando com o número potencial de utilizadores tomando por base a população servida”, acrescenta. O projeto da Infraestruturas de Portugal aponta para que a linha entre Porto e Lisboa tenha uma procura de 16 milhões quando estiver concluída, depois de 2030, face aos atuais seis milhões da linha do Norte. “Como explicar o triplicar do uso. A minha experiência de décadas é que as projeções de tráfego são geralmente insufladas para levar a resultados líquidos positivos”, diz ainda Alfredo Marvão Pereira.
“Construímos um modelo suficientemente conservador, com entidades independentes, para estarmos confortáveis com os números apresentados. Estamos a usar estimativas que são conservadoras”, garante o presidente da Infraestruturas de Portugal. “Todos os estudos feitos apontam para um custo-benefício positivo”, diz Miguel Cruz.
Construímos um modelo suficientemente conservador, com entidades independentes, para estarmos confortáveis com os números apresentados.
O professor do Departamento de Economia do College of William and Mary aconselha o entrosamento da alta velocidade com a rede ibérica, já previsto com a ligação à linha para Vigo, com a linha convencional e o transporte de mercadorias.
José Manuel Viegas, fundador e CEO da TIS.pt e especialista em transportes, defende o investimento na linha de alta velocidade Porto – Lisboa e considera mesmo que deve ir além do programado. “Se estendermos a linha um pouco mais, podemos criar uma área metropolitana que vai de Braga a Setúbal, com um diâmetro temporal de duas horas, abrangendo cerca de 80% da população e 85% do PIB”.
“De repente, Portugal está a pôr todos os ovos na ferrovia. O nosso atraso é tão grande que tenho dificuldade em dizer que algum deles é dispensável. Não há descarbonização sem um forte investimento na ferrovia“, argumenta Carlos Oliveira Cruz.
De repente Portugal está a pôr todos os ovos na ferrovia. O nosso atraso é tão grande que tenho dificuldade em dizer que algum deles é dispensável.
O CEO da TIS.pt deixa ainda um alerta em relação aos metros: “Em muitos casos não há procura suficiente que justifique uma linha de metro pesado. Não se fizeram as contas. Lisboa tem uma densidade populacional que é um terço de Madrid”.
“Nem sempre as linhas precisarão de ser feitas em linha ferroviária convencional, pode ser ferrovia ligeira ou metrobus. O metrobus custa cinco a dez vezes menos do que metro ligeiro e 15 a 20 vezes menos que metro pesado”, acrescenta o antigo professor catedrático de Transportes do Instituto Superior Técnico.
Cuidado com as PPP
A linha de Alta Velocidade vai ser construída e gerida através do lançamento de três Parcerias Público-Privadas, um modelo que gerou polémica no passado. “Temos um legado de PPP muito lesivas para o Estado porque foram mal contratualizadas. O Estado português tem um histórico de captura por interesses privados. É preciso grande atenção a isto porque com estes grandes investimentos o risco é maior”, alerta Fernando Alexandre.
“O modelo de PPP foi frequentemente utilizado em projetos sem rentabilidade, ou seja, que não deviam ter ocorrido, e num contexto em que o Estado estava mais interessado no projeto que os privados. Destes dois factos resultaram contratos que concentraram os riscos no parceiro Estado“, considera também Alfredo Marvão Pereira.
O modelo de PPP foi frequentemente utilizado em projetos sem rentabilidade, ou seja, que não deviam ter ocorrido, e num contexto em que o Estado estava mais interessado no projeto que os privados. Destes dois factos resultaram contratos que concentraram os riscos no parceiro Estado.
“Sou favorável ao modelo PPP, mas ele é tão bom quanto apropriada for a sua aplicação e séria for a sua negociação”, recomenda o professor do Departamento de Economia do College of William and Mary.
Miguel Cruz acredita que com a alta velocidade será diferente. Uma das razões para os problemas do passado foi o uso de um modelo de remuneração baseado na procura. Desta vez, será “em garantia de nível de disponibilidade de serviço”, aponta. “Houve muito trabalho da equipa de projeto liderada pela UTAP para ter o modelo mais adequado possível“, afirma, acrescentando que foram feitas comparações com as práticas internacionais.
“É duvidoso que houvesse capacidade de resposta para avançar sem ser neste modelo” na alta velocidade, considera o presidente da Infraestruturas de Portugal. “Significaria que teríamos de avançar com uma miríade de contratos e procedimentos com um conjunto muito alargado de entidades, o que seria ineficaz do ponto de vista operacional e financeiro”, acrescenta.
“Toda a prática internacional mostra que é preciso ter contratos exigentes, com metas de desempenho. A contratação de serviço público tem de ser feita com níveis de desempenho e uma entidade independente que avalie e tenha capacidade punitiva em caso de incumprimento”, defende José Manuel Viegas.
Indecisão
Outro risco que os investimentos em infraestruturas enfrentam é a indecisão e incapacidade de avançar com a obra. “O investimento na ferrovia, no aeroporto, no metro parecem-me fundamentais para o país. É preciso é capacidade de execução“, vinca Carlos Oliveira Cruz. Os ciclos de investimento são longos e tipicamente não cabem numa legislatura. Se processos não têm continuidade estamos sempre a relançá-los e não a concretizá-los”, aponta o professor catedrático do Instituto Superior Técnico.
Um caso evidente é o novo aeroporto de Lisboa. Fernando Alexandre, que é membro da Comissão Técnica Independente responsável pela Avaliação Ambiental Estratégica sobre o aumento da capacidade aeroportuária afirma que o estudo “não define uma localização, aponta vantagens e desvantagens para todas. Cabe ao poder político decidir quais as que mais valoriza”.
E com eleições à porta, deixa um apelo: “era importante que a decisão sobre o novo aeroporto não fosse usada como arma de arremesso político. Estamos a falar da infraestrutura mais importante para as exportações”.
Assine o ECO Premium
No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.
De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.
Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.
Comentários ({{ total }})
Obras para Espanha, custos elevados, indecisão e PPP. Quatro riscos dos grandes investimentos
{{ noCommentsLabel }}